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[Moishe Postone é leitura obrigatória para aqueles que
buscam conhecer os pilares que sustentam a releitura de Marx à luz dos
elementos teóricos da teoria crítica do valor . Não resta dúvida de que este
marxista canadense , nascido em 1942 , com suas propostas nada ortodoxas , ao
longo do final do século passado e na atualidade, tem com suas obras
influenciado a produção de muitos dos pensadores desta corrente ,
como Anselm Jappe, Robert Kurz, Norbert Trenkle, assim como outros
intérpretes de Marx, como Antoine Artous.
Trilhando os caminhos abertos pelos pensadores do Instituto
para Pesquisa Social de Frankfurt (onde estudou) , não nega que o estudo do
livro e a sua interpretação de “História e consciência de classe”, de
Georg Lukács (livro ao qual, todavia, tece agudas críticas) e pela produção
teórica de marxistas heterodoxos como Sohn-Rethel, Isaak Rubin e Roman
Rosdolsky foram decisivos para a estruturação de uma vasta obra , onde
destacamos aqui o conhecido “Tempo, trabalho e dominação social “(Booktrailer |
Boitempo.
Desde a sua publicação em 1993, Tempo, Trabalho e Dominação
Social de Moishe Postone tem recebido um grande número de apreciações elogiosas
de várias áreas das ciências sociais críticas. Ele defende que a “dominação
social” mencionada no título é gerada pelo próprio trabalho e não apenas pelos
mecanismos do mercado e pela propriedade privada. De um modo semelhante ao Grupo
Krisis, na Alemanha (e à obra de Robert Kurz e Norbert Trenkle), o trabalho
industrial é visto como a barreira para a emancipação humana e não como a chave
para a sua concretização. Neste sentido, embora identifique uma convergência
entre os objetivos do capitalismo e aqueles dos antigos socialismos estatais,
Postone não se limita a rejeitar os sistemas anteriores. Um dos aspectos mais
estimulantes do seu livro é a tentativa de formular uma nova teoria social
crítica.
Para um melhor conhecimento do pensamento de Postone trago
aqui um texto publicado pelo Grupo Krisis além de uma palestra , em vídeo, que
ele fez no Brasil em Evento organizado pelo Grupo Crítica Radical de Fortaleza
.]
“Repensando a crítica de Marx ao capitalismo .Moishe
Postone
[
Introdução
Neste trabalho, desenvolverei uma reinterpretação
fundamental da teoria crítica madura de Marx a fim de reconceituar a natureza
da sociedade capitalista. A análise de Marx das relações sociais e das formas
de dominação que caracterizam a sociedade capitalista pode ser mais
proveitosamente reinterpretada pelo repensar das categorias centrais de sua
crítica à economia política. (1) Com este objetivo, procurarei desenvolver
conceitos que preencham dois critérios: primeiro, que os mesmos devem apreender
o caráter essencial e o desenvolvimento histórico da sociedade moderna; e,
segundo, serem capazes de superar as familiares dicotomias teóricas entre
estrutura e funcionamento, significado da vida e vida material. Com base nesta
abordagem, tentarei reformular a relação entre a teoria marxiana e os atuais
discursos da teoria política e social, de uma forma tal que tenha significação
teórica, hoje, e forneça uma crítica básica às teorias marxistas tradicionais e
ao que foi denominado de “socialismo realmente existente”. Ao fazer isto,
espero lançar os fundamentos de uma análise crítica da formação social
capitalista, diferente e mais poderosa; uma crítica mais adequada ao final do
Século XX.
Tentarei desenvolver tal compreensão do capitalismo com base
na análise de Marx, distinguindo conceitualmente o núcleo fundamental do
capitalismo, na atualidade, das formas que assumia no Século XIX. Fazer isso
significa questionar muitos dos pressupostos básicos das interpretações
marxistas tradicionais. Por exemplo, não analiso o capitalismo,
primordialmente, em termos da propriedade privada dos meios de produção ou em
termos do mercado. Ao contrário, como se tornará claro mais adiante, conceituo
o capitalismo em termos de uma forma historicamente específica de
interdependência, com um caráter impessoal e aparentemente objetivo. Esta forma
de interdependência concretiza-se através de formas das relações sociais
historicamente específicas, que são constituídas por formas determinadas de
prática social e, além disso, tornam-se quase independentes das pessoas
engajadas nessas práticas. O resultado é uma forma de dominação social nova e
crescentemente abstrata – uma forma que subordina as pessoas a imperativos
estruturais impessoais e a restrições que não podem ser adequadamente captadas
em termos de dominação concreta (e. g., dominação pessoal ou de grupo) e que
gera uma dinâmica histórica progressiva. Ao reconceituar as relações e as
formas de dominação que caracterizam o capitalismo, tentarei fornecer bases
para uma teoria capaz de analisar as características sistêmicas da sociedade
moderna, tais como, seu caráter historicamente dinâmico, seus processos de
racionalização, sua forma particular de “crescimento” econômico e seu modo de
produzir dominante.
Esta reinterpretação trata a análise do capitalismo
desenvolvida por Marx menos como uma teoria das formas de exploração e de
dominação no interior da sociedade moderna, e mais como uma teoria social
crítica da própria natureza da modernidade. Modernidade não é um estágio
evolucionário na direção da qual evoluem todas as sociedades, mas uma forma
específica de vida social que se originou na Europa Ocidental e tem se
desenvolvido como um sistema global complexo. (2) Embora a modernidade tenha
tomado diferentes formas em diferentes países e regiões, minha preocupação não
é examinar estas diferenças, mas explorar, teoricamente, a natureza da modernidade
per se. Dentro do quadro de uma abordagem não evolucionária, tal investigação
deve explicitar e explicar a feição característica da modernidade, naquilo que
se relaciona a formas sociais historicamente específicas. Meu argumento é que a
análise de Marx acerca das formas sociais consideradas básicas para a
estruturação do capitalismo – a mercadoria e o capital – fornece um excelente
ponto de partida para a tentativa de aprofundar socialmente o entendimento das
características sistêmicas da modernidade e sinaliza no sentido de que a
sociedade moderna pode ser fundamentalmente transformada. Além disso, tal
abordagem é capaz de sistematizar a elucidação daquelas características da
sociedade moderna, que no quadro das teorias de progresso linear ou de desenvolvimento
histórico harmônico podem parecer anômalas. Essas teorias são incapazes de
explicar a visível e crescente produção da pobreza em meio à abundância e o
grau em que importantes aspectos da vida moderna têm sido modelados e
subordinados aos imperativos de forças sociais abstratas e impessoais, mesmo
que se tenha ampliado substancialmente a possibilidade de controle coletivo
sobre as circunstâncias da vida social.
Minha leitura da teoria crítica de Marx concentra-se em sua
concepção da centralidade do trabalho para a vida social, a qual é geralmente
considerada como estando situada no núcleo de sua teoria. Argumento que o
significado da categoria trabalho em suas obras maduras é diferente do que
tradicionalmente tem sido apresentado: ela é historicamente específica, no
lugar de transhistórica. Na crítica madura de Marx, a noção de que o trabalho
constitui o mundo social, e é a fonte de toda a riqueza, não se refere à
sociedade em geral, mas especificamente à sociedade moderna ou capitalista,
Além do mais, e isto é crucial, a análise de Marx não se refere ao trabalho
como ele é concebido em geral e transhistoricamente – uma atividade social
direcionada para um objetivo que estabelece a intermediação entre o homem e a
natureza, criando produtos específicos a fim de satisfazer determinadas
necessidades humanas – mas atribui-lhe um papel peculiar que desempenha na
sociedade capitalista. Como aprofundarei mais tarde, o caráter historicamente
específico deste trabalho está intrinsecamente relacionado à forma de interdependência
social, característica da sociedade capitalista. Ele constitui uma forma de
mediação social, historicamente específica e quase objetiva que, no quadro
analítico de Marx, serve como o fundamento social decisivo das características
básicas da modernidade.
É esta reconsideração do significado do conceito de trabalho
em Marx que fornece a base para minha reinterpretação de sua análise do
capitalismo. Ela introduz considerações de temporalidade e situa a crítica à
produção no centro da análise de Marx, e lança o fundamento para uma análise da
moderna sociedade capitalista como uma sociedade dinamicamente regulada,
estruturada por uma forma historicamente específica de mediação social que,
embora socialmente constituída, possui um caráter abstrato, impessoal e quase
objetivo. Esta forma de mediação é estruturada por uma forma de prática social
historicamente determinada (o trabalho no capitalismo) e por estruturas, no
lugar das ações das pessoas, de suas visões do mundo e de suas competências e talentos.
Tal abordagem reformula a questão da relação entre cultura e vida material,
transformando-a em uma relação entre uma forma de mediação social
historicamente específica e formas de “objetividade” e de “subjetividade”
sociais. Como uma teoria da mediação social, é um esforço para superar a
clássica dicotomia teórica entre sujeito e objeto na medida em que explica esta
dicotomia historicamente.
Assim, em termos gerais, estou sugerindo que a teoria
marxiana deveria ser entendida não como uma teoria universalmente aplicável,
mas como uma teoria crítica específica da sociedade capitalista. Ela analisa a
especificidade histórica do capitalismo e a possibilidade de sua superação por
meio de categorias que captam suas formas específicas de trabalho, riqueza e
tempo. (3) Além disso, a teoria marxiana, de acordo com esta abordagem, é auto
reflexiva e, por conseguinte, é, ela mesma, historicamente específica: sua
análise da relação entre teoria e sociedade é tal que pode, de uma maneira
epistemologicamente consistente, localizar-se historicamente através das mesmas
categorias com as quais analisa seu contexto social.
Esta interpretação relativa à teoria crítica madura de Marx
tem importantes implicações que tentarei desvendar no decorrer desta obra. Para
tanto, iniciarei fazendo a distinção entre duas importantes vertentes da
análise crítica, fundamentalmente diferente: uma que considera a crítica ao
capitalismo do ponto de vista do trabalho, e a outra vertente, para qual deve
ser feita a crítica ao trabalho no capitalismo. A primeira, baseada em uma
compreensão transhistórica do trabalho, pressupõe que exista uma tensão
estrutural entre os aspectos da vida social que caracterizam o capitalismo (por
exemplo, o mercado e a propriedade privada) e a esfera social constituída pelo
trabalho. O trabalho, portanto, constitui a base da crítica ao capitalismo, o
marco a partir do qual esta crítica é elaborada. De acordo com a segunda
vertente de análise, o trabalho no capitalismo é historicamente específico e
permeia as estruturas essenciais desta sociedade. Assim, o trabalho é o objeto
da crítica à sociedade capitalista. Do ponto de vista da segunda vertente de
análise, é possível identificar que diferentes interpretações de Marx mantêm em
comum vários pressupostos básicos da primeira vertente de análise. Por este
motivo, caracterizo estas interpretações como “tradicionais”. Investigarei seus
pressupostos do ponto de vista da minha interpretação da teoria de Marx como
sendo uma crítica ao trabalho no capitalismo, a fim de demonstrar não apenas as
limitações da análise tradicional como a necessidade de outra mais adequada
teoria crítica da sociedade capitalista.
Apresentar a análise de Marx como uma crítica historicamente
específica do trabalho no capitalismo conduz a uma compreensão da sociedade
capitalista muito diferente daquela que está presente nas interpretações
marxistas tradicionais. Isso sugere, por exemplo, que, na análise de Marx, as
relações sociais e as formas de dominação que caracterizam o capitalismo não podem
ser suficientemente entendidas enquanto relações de classe enraizadas em
relações de propriedade e mediadas pelo mercado, como pretendem as
interpretações tradicionais. Ao contrário, sua análise da mercadoria e do
capital – ou seja, das formas quase objetivas de mediação social constituídas
pelo trabalho no capitalismo – deveria ser entendida como uma análise das
relações sociais fundamentais desta sociedade. Estas formas sociais impessoais
e abstratas não apenas encobrem o que tradicionalmente tem sido avaliado como
as “reais” relações sociais do capitalismo, isto é, as relações de classe; elas
são as reais relações sociais da sociedade capitalista, estruturando sua
trajetória dinâmica e seu modo de produzir.
Longe de analisar o trabalho como o princípio de
constituição social e a fonte de riqueza em todas as sociedades, a teoria de
Marx sugere que, o que caracteriza inequivocamente o capitalismo são suas
relações sociais básicas constituídas precisamente pelo trabalho e, por
conseguinte, em última instância, uma espécie fundamentalmente diferente
daquelas que caracterizam as sociedades não capitalistas. Embora sua análise
crítica do capitalismo inclua a crítica à exploração, à desigualdade social e à
dominação de classe, vai além disso, ao procurar elucidar o próprio tecido das
relações sociais na sociedade moderna, e a forma abstrata de dominação social
que lhes é intrínseca, através de uma teoria que fundamenta sua constituição
social em determinadas e estruturadas formas de práticas.
Esta reinterpretação da teoria crítica madura de Marx
desloca o foco central de sua crítica para longe das considerações sobre a
propriedade e o mercado. Diferentemente das abordagens marxistas tradicionais,
a mesma fornece a base para uma crítica da natureza da produção, do trabalho e
do “crescimento” na sociedade capitalista, ao sustentar que tais dimensões, em
vez de tecnicamente, são socialmente constituídas. Tendo assim deslocado o foco
da crítica ao capitalismo para a esfera do trabalho, a interpretação aqui
apresentada conduz a uma crítica ao processo industrial de produção – por
conseguinte, a uma reconceituação das definições básicas de socialismo e a uma
reavaliação do papel político e social tradicionalmente atribuído ao
proletariado, na possível superação histórica do capitalismo.
À medida que esta reinterpretação implica numa crítica ao
capitalismo que não está presa às condições do capitalismo liberal do Século
XIX, e acarreta uma crítica à produção industrial, enquanto capitalista, pode
fornecer a base para uma teoria crítica capaz de esclarecer a natureza e a
dinâmica da sociedade capitalista contemporânea. Tal teoria crítica pode também
servir como o ponto de partida para uma análise do “socialismo realmente
existente”, enquanto uma forma alternativa (e fracassada) de acumulação de
capital – no lugar de um tipo de sociedade que representou, não obstante, de
maneira imperfeita, a negação histórica do capitalismo.
A crise do marxismo
tradicional
As considerações apresentadas têm sido desenvolvidas em
contraposição ao pano de fundo da crise do marxismo tradicional e à emergência
do que parece ser uma nova fase no desenvolvimento do capitalismo industrial
avançado. Neste trabalho, a expressão “marxismo tradicional” refere-se, não a
uma tendência histórica do marxismo, mas, de um modo geral, a todas as
abordagens teóricas que analisam o capitalismo do ponto de vista do trabalho e
caracterizam esta sociedade, essencialmente, em termos de relações de classe,
estruturadas pela propriedade privada dos meios de produção e por uma economia
regulada pelo mercado. As relações de dominação são entendidas, principalmente,
em termos de dominação de classe e de exploração. Como é bem conhecido, Marx
argumentou que no decorrer do desenvolvimento capitalista emerge uma tensão estrutural
ou uma contradição entre as relações sociais que caracterizam o capitalismo e
as “forças produtivas”. Esta contradição tem sido comumente interpretada em
termos de um conflito entre a propriedade privada e o mercado, de um lado, e o
modo industrial de produzir, de outro, de tal maneira que, a propriedade
privada e o mercado são tratados como marcas características do capitalismo, e
a produção industrial apresentada como a base para uma futura sociedade
socialista. O socialismo é entendido, implicitamente, em termos da propriedade
coletiva dos meios de produção e do planejamento econômico num contexto
industrializado. Isso significa que a negação histórica do capitalismo é
entendida principalmente como uma sociedade na qual a dominação e a exploração
de uma classe por outra estão superadas.
Esta caracterização ampla e preliminar do marxismo
tradicional é útil na medida em que delineia um quadro interpretativo geral
compartilhado por um amplo grupo de teorias que em outros aspectos diferem
consideravelmente umas das outras. Minha intenção neste trabalho é analisar,
criticamente, os próprios pressupostos básicos desse quadro teórico geral, em
vez de reconstituir a história das várias linhas teóricas e escolas de
pensamento no interior da tradição marxista.
No centro de todas as formas de marxismo tradicional
encontra-se uma concepção transhistórica de trabalho. A categoria trabalho
analisada por Marx é entendida em termos de uma atividade social com objetivo
definido que efetiva a mediação entre os homens e a natureza, criando produtos
específicos a fim de satisfazer determinadas necessidades humanas. O trabalho,
assim entendido, é considerado como sendo central a toda a vida em sociedade:
constitui o mundo social e é a fonte de toda a riqueza social. Esta abordagem
atribui transhistoricamente ao trabalho social àquilo que Marx analisou como
características historicamente específicas do trabalho no capitalismo. Tal
concepção transhistórica do trabalho está amarrada a uma determinada
compreensão das categorias básicas da crítica de Marx à economia política e,
por conseguinte, de sua análise do capitalismo. A teoria do valor de Marx, por
exemplo, tem sido geralmente interpretada como uma tentativa de mostrar que a
riqueza social é sempre, e em qualquer lugar, criada pelo trabalho humano e
que, no capitalismo, o trabalho fundamenta o não-consciente, “automático”, modo
de distribuição mediado pelo mercado. (4) Sua teoria da mais-valia, de acordo
com tais abordagens, procura demonstrar que, apesar das aparências, o produto
excedente no capitalismo é criado apenas pelo trabalho e é apropriado pela
classe capitalista. Dentro deste quadro geral, por conseguinte, a análise
crítica do capitalismo elaborada por Marx é, principalmente, uma crítica à
exploração do ponto de vista do trabalho: desmistifica a sociedade capitalista,
primeiro revelando ser o trabalho a verdadeira fonte da riqueza social; e,
segundo, demonstrando que esta sociedade repousa sobre um sistema de
exploração.
A teoria crítica de Marx, naturalmente, também delineia um
desenvolvimento histórico que indica a possibilidade emergente de uma sociedade
livre. De acordo com as interpretações tradicionais, sua análise do percurso do
desenvolvimento capitalista pode ser esboçada como segue: a estrutura do capitalismo
de livre mercado dá origem à produção industrial a qual aumentou
significativamente o montante de riqueza social criada. Contudo, no
capitalismo, esta riqueza continua a ser extraída mediante um processo de
exploração e é distribuída de forma extremamente desigual. Todavia,
desenvolve-se uma crescente contradição entre a produção industrial e as
relações de produção existentes. Como um resultado do processo contínuo de
acumulação de capital, caracterizado pela concorrência e pelas crises, o modo de
distribuição social baseado no mercado e na propriedade privada torna-se cada
vez menos adequado a uma produção industrial desenvolvida. Deste modo, a
dinâmica histórica do capitalismo, não apenas torna anacrônicas as antigas
relações de produção, mas também dá lugar à possibilidade de um novo conjunto
de relações sociais. Ela gera as pré-condições técnicas, sociais e
organizacionais para a abolição da propriedade privada e para o planejamento
centralizado – por exemplo, a centralização e concentração dos meios de
produção, a separação entre a propriedade e a gestão, e a constituição e
concentração de um proletariado industrial. Estes desenvolvimentos fariam
emergir a possibilidade histórica da abolição da exploração e da dominação de
classe e o surgimento de um novo modo de distribuição, justo e racionalmente
regulado. O foco da crítica histórica de Marx, de acordo com esta
interpretação, é o modo de distribuição.
Esta afirmação pode parecer paradoxal, porque o marxismo é
geralmente considerado uma teoria de produção. O papel da produção na
interpretação tradicional pode ser assim resumido. Se as forças produtivas
(que, segundo Marx, entram em contradição com as relações capitalistas de
produção) estão identificadas com o modo industrial de produzir, em consequência,
este modo é entendido implicitamente como um processo puramente técnico,
intrinsecamente independente do capitalismo. O capitalismo é tratado como um
conjunto de fatores exógenos colidindo com o processo de produção: propriedade
privada e condições exógenas de valorização do capital no interior de uma
economia de mercado. Analogamente, a dominação social no capitalismo é
entendida, essencialmente, como uma dominação de classe que permanece externa
ao processo de produção. Esta análise implica que a produção industrial, uma
vez constituída historicamente, é independente do capitalismo e não a este
intrinsecamente relacionada. A contradição marxiana entre as forças produtivas
e as relações de produção, quando apresentada como uma tensão estrutural entre
a produção industrial, de um lado, e a propriedade privada e o mercado de
outro, é entendida como uma contradição entre o modo de produzir e o modo de
distribuir. Consequentemente, a transição do capitalismo para o socialismo é
vista como uma transformação do modo de distribuir (propriedade privada,
mercado), e não do modo de produzir. Ao contrário, o desenvolvimento da
produção industrial de larga escala é tratado como a mediação histórica ligando
o modo capitalista de produção à possibilidade de outra organização social de
distribuição. Uma vez desenvolvido, o modo industrial de produção baseado no
trabalho proletário é considerado historicamente definitivo.
Esta interpretação da trajetória do desenvolvimento
capitalista expressa claramente uma atitude afirmativa com relação à produção
industrial, como um modo de produzir que gera as condições para a abolição do
capitalismo e constitui o fundamento do socialismo. O socialismo é visto como
um novo modo de administrar politicamente e regular economicamente o mesmo modo
industrial de produzir que o capitalismo fez surgir; e é concebido como uma
forma social de distribuição que não somente é mais justa, mas também a mais
adequada à produção industrial. Esta adequação é considerada assim como sendo a
pré-condição histórica central para uma sociedade justa. Tal crítica social é
essencialmente uma crítica histórica do modo de distribuição. Enquanto uma
teoria da produção, o marxismo tradicional não requer uma crítica à produção. O
fundamental é exatamente o oposto: o modo de produzir proporciona a base para a
crítica e o critério com o qual é avaliada a adequação histórica do modo de
distribuição.
Esta crítica ao capitalismo implica numa outra maneira de
conceituar o socialismo, como sendo uma sociedade na qual o trabalho, liberto
das relações capitalistas, estrutura a vida social abertamente e a riqueza que
ele cria é distribuída de forma mais justa. Dentro do quadro tradicional, a
“realização” histórica do trabalho – seu pleno desenvolvimento histórico e sua
emergência como a base da vida social e da riqueza – é a condição fundamental
da emancipação social geral.
A visão de socialismo como a realização histórica do
trabalho está também evidente na ideia de que o proletariado – a classe
trabalhadora intrinsecamente relacionada à produção industrial – surgirá como a
classe universal no socialismo. Isto é, a contradição estrutural do capitalismo
é vista, em outro nível, como uma oposição de classes entre os capitalistas,
que possuem e controlam a produção, e os proletários, que com o seu trabalho
criam a riqueza da sociedade (e a riqueza dos capitalistas), ainda que tenham
que vender sua força-de-trabalho para sobreviver. Esta oposição de classes,
porque está fundamentada na contradição estrutural do capitalismo, tem uma
dimensão histórica: ao mesmo tempo em que a classe capitalista é a classe
dominante da presente ordem, a classe trabalhadora está enraizada na produção
industrial e, por conseguinte, nos alicerces históricos de uma nova ordem, a
ordem socialista. A oposição entre estas duas classes é vista imediatamente
como um conflito entre explorados e exploradores e como um conflito entre
interesses universais e interesses individuais. A riqueza social geral
produzida pelos trabalhadores não beneficia a todos os membros da sociedade sob
o capitalismo, mas é apropriada pelos capitalistas, para os seus fins
particulares. A crítica ao capitalismo do ponto de vista do trabalho é uma
crítica na qual as relações sociais dominantes (propriedade privada) são tidas como
particularizadas, a partir de uma posição universalista. O que é universal e
verdadeiramente social é constituído pelo trabalho, porém impedido, pelas
relações capitalistas individualizadas, de se tornar plenamente realizado. A
visão de emancipação contida nesta compreensão do capitalismo é, como veremos,
uma visão de totalização.
No interior deste quadro básico, que tenho denominado
“marxismo tradicional”, existem diferenças políticas e teóricas extremamente
importantes. Por exemplo, teorias determinísticas em oposição a tentativas de
tratar a subjetividade social e a luta de classes como aspectos essenciais da
história do capitalismo; conselhos comunistas versus partidos comunistas;
teorias “científicas” versus aquelas que procuram, de várias maneiras,
sintetizar marxismo e psicanálise, ou desenvolver uma teoria crítica da cultura
ou da vida cotidiana. Apesar disso, na medida em que todas elas têm-se apoiado
nos pressupostos básicos relacionados ao trabalho e às características
essenciais do capitalismo e do socialismo acima esboçadas, permanecem presas á
estrutura do marxismo tradicional. E não importando quão incisivas tenham sido
as diversas análises sociais, políticas, históricas, culturais e econômicas que
esta estrutura teórica tenha gerado, suas limitações tornaram-se crescentemente
evidentes à luz das várias transformações ocorridas no Século XX. Por exemplo,
a estrutura teórica em questão tem sido capaz de analisar a trajetória
histórica do capitalismo liberal que o conduziu a um estágio caracterizado pela
substituição parcial ou total do mercado pelo Estado intervencionista como o
agente primário de distribuição. Porém, como o cerne da crítica tradicional é o
modo de distribuição, o crescimento do capitalismo baseado na intervenção do
Estado colocou sérios problemas a esta abordagem teórica. Se as categorias da
crítica à economia política aplicam-se somente a uma economia autorregulada,
com a mediação do mercado, e à apropriação privada do excedente, o crescimento
do Estado intervencionista tem feito com que estas categorias se tornem menos
adequadas a uma crítica social contemporânea. Ou seja, que não mais captam a
realidade social adequadamente. Consequentemente, a teoria marxista tradicional
tornou-se cada vez menos capaz de fornecer uma crítica histórica ao capitalismo
pós-liberal, ficando confinada a duas opções. Pode-se apoiar nas transformações
qualitativas do capitalismo do Século XX e se concentrar naqueles aspectos da
estrutura de mercado que continuam a existir – e deste modo reconhecer implicitamente
que se tornou uma crítica parcial; ou limitar a aplicabilidade das categorias
marxianas ao capitalismo do Século XIX e tentar desenvolver uma nova crítica,
presumivelmente mais adequada às condições contemporâneas. No decorrer deste
trabalho, discutirei as dificuldades teóricas encontradas por algumas das
tentativas concernentes a esta última opção.
As fragilidades do marxismo tradicional, ao considerar a
sociedade pós-liberal, tornam-se particularmente visíveis quando analisa de
maneira sistemática o “socialismo realmente existente”. Nem todas as formas de
marxismo tradicional afirmaram como “efetivamente socialistas” sociedades como
a União Soviética. Contudo, tal abordagem teórica não permite uma análise
crítica adequada dessa forma de sociedade. As categorias marxianas, quando
tradicionalmente interpretadas, são de pouca utilidade para a formulação de uma
crítica social a uma sociedade que é regulada e dominada pelo Estado. Assim, a
União Soviética foi com frequência considerada socialista porque a propriedade
privada e o mercado foram abolidos; a persistente falta de liberdade foi
atribuída às instituições burocráticas repressivas. Esta posição sugere,
portanto, que não existe relação entre a natureza da esfera socioeconômica e o
caráter da esfera política, indicando que as categorias da crítica social de
Marx (tais como o valor), quando entendidas em termos do mercado e da
propriedade privada, não podem captar as razões para a contínua ou crescente
falta de liberdade no “socialismo realmente existente” e não podem, portanto,
fornecer a base para uma crítica histórica de tais sociedades. Dentro de tal
quadro, a relação entre socialismo e liberdade tornou-se uma contingência. Por
conseguinte, isso implica que uma crítica histórica ao capitalismo,
desenvolvida a partir do ponto de vista do socialismo, não pode mais ser
considerada uma crítica dirigida às razões da falta de liberdade e da
alienação, da perspectiva da emancipação humana geral. (5) Estas questões
fundamentais apontam os limites da interpretação tradicional. Mostram que uma
análise do capitalismo que se concentre exclusivamente no mercado e na
propriedade privada não pode mais servir como uma base adequada para uma teoria
crítica emancipatória.
À medida que esta fragilidade fundamental vai se tornando
mais evidente, o marxismo tradicional vai sendo questionado com maior
frequência. Além disso, a base teórica de sua crítica social ao capitalismo – a
afirmação de que o trabalho humano é a fonte de toda a riqueza – tem sido
criticada à luz da crescente importância do conhecimento científico e da
tecnologia avançada para o processo de produção. O marxismo tradicional não
somente falha no sentido de fornecer bases para uma adequada análise histórica
do “socialismo realmente existente” (ou de seu colapso), mas sua análise
crítica do capitalismo e de seus ideais de emancipação tem se tornado
crescentemente distanciada dos temas e razões da atual insatisfação social nos
países industriais avançados. Isto é particularmente verdade no que respeita à
ênfase exclusiva e positiva sobre as classes, e sua afirmação de que são o
trabalho proletário industrial e as formas específicas de produção e
“progresso” técnico que caracterizam o capitalismo. Num momento de crescente
crítica a tal “progresso” e “crescimento”, de exaltação à consciência acerca
dos problemas ecológicos, de descontentamento generalizado quanto às formas de
trabalho existentes, de aumento da preocupação concernente à liberdade política
e de uma progressiva importância relacionada às identidades sociais não
baseadas em classe (gênero ou etnia, por exemplo), o marxismo tradicional
parece definitivamente anacrônico. Tanto no Leste quanto no Ocidente tem-se
revelado historicamente inadequado, diante das transformações ocorridas no
decorrer do Século XX.
A crise do marxismo tradicional, no entanto, de forma alguma
invalida a pertinência de uma crítica social adequada ao capitalismo
contemporâneo. (6) Ao contrário, estimula a necessidade de que tal crítica seja
elaborada. A presente situação histórica pode ser entendida em termos de uma
transformação da moderna sociedade capitalista que tem um alcance tão
significativo – social, política, econômica e culturalmente – quanto à
transição anterior do capitalismo liberal para o capitalismo intervencionista
de Estado. Parece-nos ainda que se configure outra fase histórica do
capitalismo desenvolvido (7) Os contornos desta nova fase ainda não estão
claros, mas as duas últimas décadas testemunharam o relativo declínio da
importância das instituições e instâncias de poder que estiveram no centro do
capitalismo intervencionista de Estado – este, caracterizado pela produção
geograficamente centralizada, grandes sindicatos industriais, crescente
intervenção progressiva do governo na economia e um Estado de bem-estar
amplamente expandido. Duas tendências históricas aparentemente opostas têm
contribuído para este enfraquecimento das instituições centrais da fase
intervencionista do Estado no capitalismo: de um lado, uma parcial
descentralização da produção e da política e com ela a emergência de uma
pluralidade de grupamentos sociais, organizações, movimentos, partidos e
subculturas; e, de outro, um processo de globalização e concentração de capital
que tem ocorrido em novas bases, seguramente abstratas, sem qualquer paralelo
com a experiência imediata e, aparentemente, pelo menos por enquanto, para além
do controle efetivo do Estado.
Essas tendências, no entanto, não deveriam ser entendidas em
termos de um processo histórico linear. Elas incluem mudanças que destacam o
caráter anacrônico e inadequado da teoria tradicional – por exemplo, o
surgimento de novos movimentos sociais, tais como os movimentos ecológicos de
massa, os movimentos de mulheres, os movimentos de emancipação das minorias,
bem como o crescente descontentamento (e a polarização concernente) com as
formas existentes de trabalho e os sistemas tradicionais de valores e
instituições. Ainda, o momento histórico, desde o início dos anos de 1970, tem
sido caracterizado também pela reemergência de manifestações “clássicas” do
capital industrial, tais como suas relocalizações econômicas em todo o mundo e
a intensificação da rivalidade intercapitalista, em escala global. Tomadas em
conjunto, essas mudanças sugerem que uma análise crítica adequada à sociedade
capitalista contemporânea deve ser capaz de incluir suas novas e significativas
dimensões e os fundamentos de sua continuidade enquanto capitalismo.
Em outras palavras, tal análise deve evitar a visão teórica
unilateral das versões mais ortodoxas do marxismo tradicional. Estas são
frequentemente capazes de afirmar que crises e rivalidade intercapitalistas são
características que acompanham a evolução do capitalismo (apesar da emergência
do Estado intervencionista); mas incapazes de se reportar às mudanças
históricas qualitativas na identidade e na natureza dos grupamentos sociais que
expressam descontentamento e oposição, ou no caráter de suas necessidades,
insatisfações, aspirações e formas de consciência. Ainda, uma análise adequada
deve também evitar a tendência igualmente unilateral de se reportar apenas às
mudanças mais recentes, ignorando a “esfera econômica” ou simplesmente
pressupondo que, com o surgimento do Estado intervencionista, as considerações
econômicas tomaram-se menos importantes. Finalmente, nenhuma crítica adequada
pode ser formulada, simplesmente juntando as análises que se concentravam em
questões econômicas àquelas que se reportavam à análise das mudanças
qualitativas sociais e culturais – e assim, com os pressupostos teóricos básicos
de tal crítica permanecendo aqueles da teoria marxista tradicional. O caráter
crescentemente anacrónico do marxismo tradicional e suas sérias fragilidades,
enquanto uma teoria crítica emancipatória, são intrínsecas a esta abordagem da
sociedade capitalista. Em última análise, estão na origem de sua insuficiência
na tentativa de apreender adequadamente o capitalismo.
Essa insuficiência tem se tornado mais clara diante da atual
transformação da moderna sociedade capitalista. Da mesma forma que a Grande
Depressão revelou os limites da “auto regulação” de uma economia mediada pelo
mercado e as deficiências de concepções que igualavam capitalismo, a
capitalismo liberal, o período caracterizado pelas crises que marcaram o final
da era de prosperidade e expansão econômica do pós-Guerra, evidenciou os
limites da capacidade do Estado intervencionista de regular a economia. Isto
abalou as concepções lineares de desenvolvimento do capitalismo, de uma fase
liberal a outra centrada no Estado. A expansão do Estado de bem-estar social,
após a II Guerra Mundial, tornou-se possível em virtude da expansão por um
longo período da economia mundial, que se notabilizou como a fase de ouro do
desenvolvimento capitalista; não como um resultado do fato das esferas políticas
terem, exitosa e permanentemente, assumido o controle da esfera econômica.
Contudo, o desenvolvimento do capitalismo nas últimas duas décadas fez
retroceder as tendências visíveis do período anterior, enfraquecendo e impondo
limites ao intervencionismo do Estado. Isto ficou manifesto na crise do Estado
de bem-estar no Ocidente – que proclamou a morte do keynesianismo e, de modo
patente, reafirmou a dinâmica contraditória do capitalismo – bem como, na crise
e colapso na maioria dos estados e partidos comunistas no Leste. (8)
É digno de atenção que, comparada à situação depois do
colapso do capitalismo liberal no final dos anos de 1920, as crises e
desarticulações associadas às mais recentes transformações do capitalismo
estimularam poucas análises críticas, desenvolvidas a partir de uma perspectiva
que apontasse para a possível superação do capitalismo. Isto pode ser
interpretado como uma expressão de incerteza teórica. A crise do capitalismo
intervencionista de Estado serviu para indicar que o capitalismo continuou a se
desenvolver com uma dinâmica quase autônoma. Este desenvolvimento, portanto,
demanda uma reconsideração crítica daquelas teorias que haviam interpretado a
substituição do mercado pelo Estado como significando a eliminação definitiva
das crises econômicas. No entanto, a natureza fundamental do capitalismo, do
processo dinâmico que se afirma a si mesmo, mais uma vez, permanece sem
explicação. Não é mais convincente clamar que o “socialismo” representa a
resposta para os problemas do capitalismo, quando o que se está querendo
justificar é simplesmente a introdução do planejamento central e da propriedade
estatal (ou mesmo pública).
A frequentemente evocada “crise do marxismo” não expressa,
então, apenas a rejeição desiludida ao “socialismo realmente existente”, a
descrença no proletariado e a incerteza quanto a quaisquer outros possíveis
agentes sociais de transformação social fundamental. Mais fundamentalmente é a
expressão de uma profunda incerteza quanto ao significado essencial do
capitalismo e do que viria substituí-lo com sua superação. A diversidade de
posições teóricas formuladas nas décadas passadas – o dogmatismo de muitos
grupos da Nova Esquerda do final dos anos de 1960 e no início dos anos de 1970,
as críticas puramente políticas que reemergiram subsequentemente e muitas das
posições “pós-modernas” contemporâneas – pode ser vista como expressão de tal
incerteza quanto à natureza da sociedade capitalista e mesmo como um
desapontamento quanto à possibilidade de iniciativas no sentido de captá-la.
Esta incerteza pode ser entendida, em parte, como uma expressão da
insuficiência básica da abordagem marxista tradicional. Suas fragilidades têm
sido reveladas não somente pelas dificuldades com relação ao “socialismo
realmente existente” e diante das necessidades e insatisfações inerentes aos
novos movimentos sociais. Mais fundamentalmente, tem-se tornado claro que este
paradigma teórico não fornece uma concepção satisfatória sobre a própria
natureza do capitalismo; uma concepção que estabeleça uma análise adequada das
mudanças que o atingem e que seja capaz de proporcionar o entendimento de suas
estruturas fundamentais de modo a apontar a possibilidade de sua transformação
histórica. A transformação subentendida pelo marxismo tradicional não é, em
nenhuma medida, plausível como uma “solução” para os males da sociedade
moderna.
Se a sociedade moderna deve ser analisada enquanto
capitalista e, por conseguinte, como transformável em um nível fundamental,
então, o núcleo fundamental do capitalismo deve ser redefinido. Sobre esta base
poderia ser formulada uma teoria crítica diferente acerca da natureza e
trajetória da sociedade moderna – uma teoria que buscasse apreender, social e
historicamente, as raízes da não-liberdade e da alienação na sociedade moderna.
Tal análise contribuiria também para uma teoria política da democracia. A
história do marxismo tradicional tem apenas revelado explicitamente que a
questão da liberdade política deve ser central para qualquer posição crítica.
Não obstante, é preciso ainda considerar que uma adequada teoria da democracia
requer uma análise histórica das condições sociais de liberdade, que não pode
ser elaborada a partir de uma posição abstratamente normativa ou de uma posição
que atribua uma existência material à esfera da política.
Reconstruindo uma
teoria crítica da sociedade moderna
A presente reinterpretação da natureza da teoria crítica de
Marx é uma resposta à transformação histórica do capitalismo e às fragilidades
do marxismo tradicional esboçadas acima. (9) Minha leitura dos Grundrisse de
Marx, uma versão preliminar de sua crítica à economia política, levou-me a
rever a teoria crítica que ele desenvolveu em seus escritos maduros,
particularmente em O Capital. Esta teoria, como a entendo, é diferente e mais poderosa
do que as interpretações do marxismo tradicional; e também possui um
significado mais contemporâneo. Considero que a reinterpretação da concepção de
Marx, quanto às relações estruturantes básicas da sociedade capitalista aqui
apresentada, pode servir como ponto de partida para uma teoria crítica do
capitalismo, superar muitas das deficiências da interpretação tradicional e ser
mais adequada para se reportar a muitas mudanças e questões postas recentes.
A reinterpretação aqui apresentada tanto tem sido
influenciada pelas, quanto pretende ser uma crítica às abordagens desenvolvidas
por Georg Lukács (especialmente na obra History and Class Consciousness) e por
adeptos da teoria crítica da Escola de Frankfurt. Tais abordagens, baseadas em
compreensões sofisticadas da crítica de Marx, expressam uma resposta teórica à
compreensão da transformação histórica do capitalismo, da forma liberal,
regulada pelo mercado, para uma forma organizada, burocrática, dirigida pelo
Estado, mediante um redirecionamento do capitalismo. Dentro dessa tradição
interpretativa, a teoria de Marx não é considerada como uma teoria da produção
material e da estrutura de classes, e menos ainda, uma teoria da economia. No
lugar disso, é entendida como uma teoria da constituição histórica de formas
determinadas, reificadas, de objetividade e subjetividade sociais. Sua crítica
à economia política é considerada como uma tentativa de analisar criticamente
as formas culturais e as estruturas sociais da civilização capitalista. (10)
Adicionalmente, a teoria de Marx é considerada como capaz de compreender a
relação entre teoria e sociedade, de maneira auto reflexiva, por procurar
analisar seu contexto – a sociedade capitalista -, situando-se historicamente e
creditando-se à condição de se tornar o próprio ponto de vista. (Esta tentativa
de fundamentar socialmente a possibilidade de uma crítica teórica é vista como
um aspecto necessário a qualquer tentativa de fundamentar a possibilidade de
ação social antitética e transformadora.) Encaro com simpatia o projeto geral
de desenvolver uma ampla e coerente crítica social, política e cultural,
adequada à sociedade capitalista contemporânea, por meio de uma teoria social auto
reflexiva, com objetivo emancipatório. Todavia, como ainda irei aprofundar, alguns
dos pressupostos teóricos básicos impediram, de modo diferenciado, Lukács, bem
como membros da Escola de Frankfurt, de realizarem plenamente seus objetivos
teóricos. Por um lado, eles reconheceram as inadequações de uma teoria crítica
da modernidade que definisse o capitalismo situando-o apenas no Século XIX, ou
seja, em termos do mercado e da propriedade privada. Por outro, entretanto,
permaneceram presos a alguns pressupostos deste mesmo tipo de teoria, em
particular, no que diz respeito a sua concepção transhistórica do trabalho. O
objetivo programático de ambos, em desenvolver uma concepção de capitalismo
adequada ao Século XX, não poderia ser realizado com base em tal compreensão
acerca do trabalho. Pretendo melhor adequar a força propulsora crítica dessa
tradição interpretativa, reexaminando a análise de Marx sobre a natureza e
significado do trabalho no capitalismo.
Segundo minha reinterpretação, embora a análise marxiana do
capitalismo pressuponha uma crítica à exploração e ao modo burguês de distribuição
(o mercado, a propriedade privada), não é desenvolvida a partir do ponto de
vista do trabalho; ao contrário, está baseada na crítica ao trabalho no
capitalismo. A teoria crítica de Marx procura mostrar que o trabalho no
capitalismo desempenha um papel historicamente específico para mediar as
relações sociais e para elucidar as consequências desta forma de mediação. Sua
ênfase sobre o trabalho no capitalismo não implica que o processo material de
produção seja necessariamente mais importante do que outras esferas da vida
social. Ao contrário, sua análise da especificidade do trabalho no capitalismo
sugere que a produção no capitalismo não é um processo puramente técnico; mas
sim que está inextricavelmente relacionada e moldada pelas relações sociais
básicas desta sociedade. Estas, por sua vez, não podem ser compreendidas
tomando por referência apenas o mercado e a propriedade privada. Esta
interpretação da teoria de Marx fornece a base para uma crítica da forma de
produção e da forma de riqueza (isto é, o valor), que caracterizam o
capitalismo, ao invés de simplesmente questionar sua apropriação privada.
Também caracteriza o capitalismo em termos de uma forma abstrata de dominação
associada à natureza peculiar do trabalho nele existente, e situa nesta forma
de dominação, o fundamento social último para o “crescimento” anárquico e o
caráter crescentemente fragmentado do trabalho, e até mesmo da existência
individual, na sociedade capitalista. A presente interpretação sugere que a
classe trabalhadora é essencial para o capitalismo, em vez de materializar sua
negação. Como veremos, tal abordagem reinterpreta a concepção de alienação em
Marx à luz da sua crítica madura ao trabalho no capitalismo e situa esta
concepção reinterpretada de alienação no centro de sua crítica à sociedade
capitalista.
Claramente, tal crítica da sociedade capitalista difere
inteiramente daquele tipo de crítica “produtivista”, característica de muitas
interpretações marxistas tradicionais, que ratificam o trabalho proletário, a
produção industrial e um “crescimento” industrial totalmente livre. Na verdade,
do ponto de vista da reconsideração aqui apresentada, a posição produtivista
não representa uma crítica fundamental: não apenas fracassa por não apresentar
uma alternativa de uma possível futura sociedade além do capitalismo, mas
ratifica alguns aspectos centrais do próprio capitalismo. A este respeito, a
reconstrução da teoria crítica madura de Marx assumida neste trabalho fornece o
ponto de vista para uma crítica ao paradigma produtivista na tradição marxista.
Como deixarei claro, aquilo que a tradição marxista tem geralmente tratado como
positivo, é precisamente o objeto de crítica nas obras mais recentes de Marx.
Pretendo enfatizar tal diferença, não somente para assinalar que a teoria de
Marx não era produtivista e, portanto, questionar uma tradição teórica que
professa se apoiar nos textos de Marx – mas também mostrar como a própria
teoria de Marx fornece uma crítica poderosa ao paradigma produtivista, e que,
não por acaso, o rejeita como falso, e ainda procura torná-lo compreensível em
termos sociais e históricos. Assim o faz, fundamentando teoricamente a
possibilidade de tal concepção nas formas sociais estruturantes da sociedade
capitalista. Desse modo, a análise categorial (11) de Marx do capitalismo
estabelece a base para uma crítica ao paradigma do produtivismo enquanto uma
posição que, na verdade, expressa um momento da realidade histórica da
sociedade capitalista mas o faz numa perspectiva transhistórica e, por
conseguinte, numa perspectiva não-crítica e ratificadora.
Apresentarei uma interpretação similar à teoria da história
de Marx. Nas obras maduras, sua noção de uma lógica imanente ao desenvolvimento
histórico também não é transhistórica e nem categórica, mas é crítica e se
refere especificamente à sociedade capitalista. Marx identifica o fundamento de
uma forma particular de lógica histórica nas formas sociais específicas da
sociedade capitalista. Sua posição nem afirma a existência de uma lógica
transhistórica da história, nem nega a existência de algum tipo de lógica
histórica. Ao contrário, trata tal lógica como uma característica da sociedade
capitalista que pode ser, e tem sido projetada sobre toda a história da
humanidade.
A teoria de Marx, ao expressar dessa maneira formas de
pensamento, social e historicamente plausíveis, procura tornar válidas,
reflexivamente, suas próprias categorias. A teoria, então, é tratada como parte
da realidade social na qual ela existe. A abordagem que proponho é uma
tentativa de formular uma crítica ao paradigma da produção com base nas
categorias sociais da crítica marxiana da produção e, através disso, amarrar a
crítica da teoria a uma possível crítica social. Esta abordagem fornece a base
para uma teoria crítica da sociedade moderna que não exige nem uma afirmação
abstratamente universalista e racionalista da modernidade, nem uma crítica
anti-racionalista e antimoderna. Ao contrário, procura superar ambas as
posições, tratando suas contradições como historicamente determinadas e enraizadas
na natureza das relações sociais capitalistas.
A reinterpretação da teoria crítica de Marx aqui apresentada
baseia-se na reconsideração das categorias fundamentais de sua crítica à
economia política – tais como valor, trabalho abstrato, a mercadoria e o
capital. Estas categorias, de acordo com Marx, “expressam as formas de ser
[Daseinsformen], as determinações de existência” [Existenzbestimmungen]… desta
sociedade específica. (12) Elas se apresentam como se fossem categorias de uma
etnografia crítica da sociedade capitalista realizada em suas entranhas –
categorias que pretendem expressar as formas básicas de objetividade e de
subjetividade que estruturam as dimensões da vida social, econômica, histórica
e cultural desta sociedade, sendo elas mesmas constituídas por formas
determinadas de prática social.
No entanto, muito frequentemente, as categorias da crítica
de Marx têm sido consideradas como sendo categorias puramente econômicas. A
“teoria do valor-trabalho” de Marx, por exemplo, tem sido entendida como uma
tentativa de explicar, “em primeiro lugar, os preços relativos e a taxa de
lucro em equilíbrio; em segundo, a condição de possibilidade do valor-de-troca
e do lucro; e, por último, a alocação racional de produtos em uma economia
planejada”. (13) Uma abordagem tão restrita das categorias, quando trata das
dimensões sociais, históricas, cultural-epistemológicas da teoria crítica de
Marx, o faz apenas quando aparecem referências àquelas passagens que se referem
explicitamente a estas dimensões, retiradas do contexto de sua análise
categorial. A amplitude e a natureza sistêmica da teoria crítica de Marx, no
entanto, só podem ser captadas completamente através de uma análise de suas
categorias, entendidas como determinações do ser social no capitalismo. Apenas
quando as afirmações explícitas de Marx são entendidas com respeito aos
desdobramentos de suas categorias, é possível reconstruir adequadamente a
lógica interna de sua crítica. Por conseguinte, dedicarei especial atenção à
reconsideração das determinações e implicações das categorias básicas da teoria
crítica de Marx.
Ao reinterpretar a crítica marxiana, tentarei reconstruir
sua natureza sistêmica e resgatar sua lógica interna. Não examinarei a
possibilidade de ocorrências de divergências ou contradições nas obras maduras
de Marx, nem reconstruirei o percurso do desenvolvimento de seu pensamento.
Metodologicamente, minha intenção é interpretar as categorias fundamentais da
crítica à economia política feita por Marx de uma maneira logicamente coerente
e sistematicamente rigorosa, tanto quanto possível, a fim de desenvolver a
teoria do núcleo do capitalismo embutida na essência de tais categorias –
aquela que define o capitalismo enquanto tal, ao longo de seu desenvolvimento.
Minha crítica ao marxismo tradicional é uma parte desta retomada conceitual da
teoria marxiana, em seu nível mais coerente.
Esta abordagem poderia servir também como o ponto de partida
de um esforço no sentido de situar historicamente as próprias obras de Marx.
Tal esforço reflexivo permitiria examinar as prováveis tensões internas e os
elementos “tradicionais” contidos nesses trabalhos, do ponto vista da teoria da
natureza imanente e da trajetória do capitalismo derivada de suas categorias
fundamentais. Algumas dessas tensões internas poderiam, então, serem entendidas
em termos da tensão que se estabelece, de um lado, entre a lógica da análise
categorial de Marx do capitalismo como um todo e, de outro, sua crítica mais
imediata ao capitalismo liberal – isto é, em termos de uma tensão entre dois
diferentes níveis situados historicamente. Contudo, este trabalho será
desenvolvido como se a auto compreensão de Marx fosse aquela derivada da lógica
de sua teoria do cerne da formação social capitalista. Uma vez que espero
contribuir para a reconstituição de uma teoria social crítica sistemática do
capitalismo, a questão se a efetiva auto compreensão de Marx era, na verdade,
adequada àquela lógica é, para este propósito, de importância secundária.
Este trabalho foi concebido para ser o estágio inicial de
minha reinterpretação da crítica marxiana. Antes de qualquer coisa, propõe-se a
ser mais um trabalho de esclarecimento teórico fundamental, do que uma
exposição plenamente elaborada dessa crítica, e menos uma teoria acabada do
capitalismo contemporâneo. Portanto, não me reportarei à fase mais atual da
sociedade capitalista desenvolvida. Em vez disso, tentarei interpretar a
concepção de Marx sobre as relações estruturantes fundamentais da sociedade
moderna, da forma como estão expressas em suas categorias da mercadoria e do
capital, de modo a não limitá-las a quaisquer das principais fases do
capitalismo desenvolvido – e talvez, através disso, permitir-lhes esclarecer a
natureza imanente da formação social como um todo. Isto pode fornecer a base
para uma análise da sociedade moderna do Século XX em termos de uma acentuada e
crescente distinção entre o capitalismo na atualidade e sua forma burguesa
primitiva.
Iniciarei com um esboço geral de minha interpretação baseado
na análise de várias seções dos Grundrisse de Marx. Sobre esta base, no
Capítulo 2, prosseguirei no exame mais aprofundado dos pressupostos
fundamentais do marxismo tradicional. A fim de esclarecer minha abordagem, e
explicitar sua relevância para uma teoria crítica contemporânea, examinarei, no
Capítulo 3, as tentativas empreendidas por membros do círculo da Escola de
Frankfurt – em particular, Friedrich Pollock e Max Horkheimer – de desenvolver
uma teoria crítica social adequada às importantes mudanças ocorridas na
sociedade capitalista do Século XX. Tomando como referência minha interpretação
do marxismo tradicional e a de Marx, examinarei os dilemas e fragilidades
envolvidas nessas tentativas. Em minha argumentação, procuro revelar que tais
questões indicam os limites de uma teoria que tenta entender o capitalismo
pós-liberal, mantendo ainda certos pressupostos básicos do marxismo
tradicional.
Minha análise daqueles limites tem a pretensão de ser uma
resposta crítica aos dilemas teóricos da Teoria Crítica. A obra de Jürgens Habermas,
obviamente, pode ser entendida como outra resposta; porém, ele também retém o
que considero uma compreensão tradicional sobre o trabalho. Minha crítica a
esta compreensão procura também apontar para a possibilidade de uma teoria
social crítica reconstituída, que difere daquela apresentada por Habermas. Tal
teoria prescindiria das concepções evolucionárias da história e da noção de que
a vida humana em sociedade esteja baseada sobre um princípio ontológico que “se
afirma a si mesmo” no curso do desenvolvimento histórico (por exemplo, o
trabalho no marxismo tradicional, ou a ação comunicativa na obra mais recente
de Habermas). (14)
Na segunda metade deste trabalho, iniciarei minha
reconstrução da crítica marxiana, a qual irá esclarecer, ainda que retrospectivamente,
a base para minha crítica ao marxismo tradicional. N’O Capital, Marx busca
desvendar a sociedade capitalista identificando suas formas sociais
fundamentais, e sobre esta base, desenvolve, cuidadosamente, um conjunto de
categorias inter-relacionadas, com as quais explica seu funcionamento
subjacente. Começando com as categorias que ele presume serem capazes de
revelar as estruturas nucleares da formação social – tais como a mercadoria, o
valor e o trabalho abstrato – Marx então desvenda seu significado, criteriosa e
rigorosamente, a fim de incorporar aspectos e níveis cada vez mais concretos e
complexos da realidade social. Minha intenção é esclarecer as categorias
fundamentais com as quais Marx inicia sua análise, isto é, o nível mais abstrato
e básico desta análise. Em minha opinião, vários intérpretes passaram muito
rapidamente para o nível analítico da realidade social concreta imediata e,
consequentemente, não perceberam alguns aspectos cruciais das próprias
categorias estruturantes fundamentais.
Examino a categoria trabalho abstrato, no Capítulo 4, e o
tempo abstrato, no Capítulo 5. Com base nestas categorias, examino criticamente
a crítica de Habermas a Marx, no Capitulo 6 e, em seguida, nos Capítulos 7, 8 e
9, reconstruo as determinações iniciais do conceito de capital de Marx e suas
noções de contradição e dinâmica histórica. Nesses capítulos, procuro
esclarecer as principais categorias básicas da teoria marxiana, para assim
fundamentar minha crítica ao marxismo tradicional e justificar meu ponto de
vista de que a lógica da apresentação categorial revelada n’ O Capital aponta
na direção consoante com a apresentação da contradição do capitalismo e da
natureza do socialismo contidas nos Grundrisse. Ao estabelecer o fundamento
para o posterior desenvolvimento de minha reconstrução, algumas vezes
extrapolarei meus argumentos para revelar suas implicações quanto a uma análise
da sociedade contemporânea. Tais extrapolações são determinações abstratas e
iniciais de aspectos do capitalismo moderno, baseadas em minha reconstrução do
nível mais fundamental da teoria crítica de Marx; elas não representam uma
tentativa de analisar diretamente, sem quaisquer mediações, níveis mais
concretos da realidade social com base nas categorias mais abstratas.
Com base no que estou desenvolvendo aqui, pretendo
prosseguir meu projeto de reconstrução [de uma teoria crítica] num trabalho
futuro. Em minha opinião, este trabalho demonstra a plausibilidade de minha
reinterpretação da crítica à economia política de Marx e da crítica ao marxismo
tradicional a esta associada. Revela ainda a força teórica da teoria marxiana e
sua possível relevância para a reconstrução de uma teoria crítica da sociedade
moderna. Não obstante, a abordagem deve ser mais aprofundada antes que a
questão da viabilidade das categorias nela contidas, tendo em vista uma teoria
crítica da sociedade contemporânea, seja discutida adequadamente.
Os grundrisse:
Repensando a
concepção de Marx sobre o capitalismo e a sua superação
Minha reinterpretação da teoria crítica madura de Marx
origina-se do exame de aspectos dos Grundrisse der Kritik der politischen
Ökonomie, os importantes fundamentos escritos por Marx em 1857-1858. (15) O
conteúdo dos Grundrisse ajusta-se muito bem para servir como ponto de partida
para a pretendida reinterpretação: são mais fáceis de decifrar do que o
Capital, o qual é sujeito a mal-entendidos por estar estruturado de uma maneira
rigorosamente lógica enquanto uma crítica imanente isto é, uma crítica
desenvolvida a partir de um ponto de vista que é imanente ao seu objeto de
investigação, em vez de externo. Como os Grundrisse não estão estruturados tão
rigorosamente, o objetivo estratégico geral da análise categorial de Marx é
mais acessível, particularmente naquelas seções onde ele apresenta sua
concepção da contradição básica da sociedade capitalista. Nelas, sua análise do
núcleo essencial do capitalismo e da natureza da sua superação histórica tem
importante significação na atualidade, pois lança dúvidas acerca das interpretações
de sua teoria, centradas em considerações relativas ao mercado e à dominação e
exploração de classe. (16)
Tentarei mostrar como essas seções dos Grundrisse indicam
que as categorias da teoria de Marx são historicamente específicas, que sua
crítica do capitalismo é direcionada tanto para seu modo de produzir como para
seu modo de distribuir, e que sua noção da contradição básica do capitalismo
não pode ser concebida simplesmente como uma contradição entre o mercado e a
propriedade privada, de um lado, e a produção industrial, de outro. Em outras
palavras, minha discussão acerca do tratamento dado por Marx à contradição do
capitalismo nos Grundrisse aponta para a necessidade de uma reconsideração de
mais longo alcance sobre a natureza de sua teoria crítica madura: em
particular, sugere que sua análise do trabalho no capitalismo é historicamente
específica, e sua teoria crítica madura é uma crítica ao trabalho no
capitalismo, não uma crítica ao capitalismo do ponto de vista do trabalho.
Assim estabelecido, estarei em condições para me referir ao problema do porquê,
na crítica de Marx, as categorias fundamentais da vida social no capitalismo
são categorias do trabalho. Isto não é, absolutamente, evidente por si mesmo, e
não pode ser justificado meramente apontando para a importância óbvia do
trabalho para a vida social humana em geral. (17)
Nos Grundrisse, a análise de Marx acerca da contradição
entre as “relações de produção” e as “forças produtivas” no capitalismo difere
da análise das teorias marxistas tradicionais, que se concentram no modo de
distribuir e entendem a contradição como uma contradição entre as esferas da
distribuição e da produção. Marx critica, explicitamente, aquelas abordagens
teóricas que conceituam a transformação histórica em termos do modo de
distribuir sem considerar a possibilidade de que o modo de produzir seja
transformado. Marx toma como exemplo de tais abordagens, a afirmação de John
Stuart Mill para quem “as leis e condições da produção da riqueza compartilham
do caráter das verdades físicas… Não é assim com a distribuição da riqueza.
Esta é, unicamente, um problema das instituições humanas.” (18) Esta separação,
de acordo com Marx, é ilegítima: “As ‘leis e condições’ da produção da riqueza
e as leis da’ distribuição da riqueza’ são as mesmas leis sob diferentes
formas, e ambas se modificam, experimentam o mesmo processo histórico; sendo,
enquanto tal, puramente momentos de um processo histórico.” (19)
A noção de Marx sobre o modo de distribuir, no entanto, não
se refere apenas à maneira pela qual as mercadorias e o trabalho são
socialmente distribuídos (por exemplo, através de mecanismo do mercado); vai
mais adiante, ao descrever que “a condição de não-proprietários dos
trabalhadores e a …apropriação do trabalho alheio pelo capital”, (20) isto é,
as relações capitalistas de propriedade enquanto “modos de distribuição [que]
são as próprias relações de produção, porém sub specie distributionis. (21)
Estas passagens indicam que a noção de Marx de modo de distribuição envolve as
relações capitalistas de propriedade. Elas também implicam que sua noção sobre
“relações de produção” não pode ser entendida apenas em termos do modo de
distribuir, mas deve também ser considerada como sub specie productionis – por
outras palavras, que as relações de produção não podem ser entendidas como
tradicionalmente têm sido. Se Marx considera as relações de propriedade como
sendo relações de distribuição, (22) decorre daí que o seu conceito de relações
de produção não pode ser plenamente captado em termos de relações capitalistas
de classe, baseadas na propriedade privada dos meios de produção e expressas na
desigual distribuição social do poder e da riqueza. Ao contrário, aquele
conceito deve também ser entendido com referência ao modo de produzir no capitalismo.
(23)
No entanto, se o processo de produção e as relações sociais
fundamentais do capitalismo estão inter-relacionados, o modo de produzir não
pode ser igualado às forças produtivas, que acabam entrando em contradição com
as relações capitalistas de produção. Em vez disso, o próprio modo de produzir
deveria ser visto como intrinsecamente relacionado ao capitalismo. Estas
passagens sugerem, em outras palavras, que a contradição marxiana não deveria
ser concebida como uma contradição entre a produção industrial de um lado, e o
mercado e a propriedade privada capitalista do outro; sua compreensão acerca
das forças e das relações de produção deve ser, portanto, profundamente
repensada. A noção de Marx acerca da superação do capitalismo sugere que a mesma
significa uma transformação, não somente do modo de distribuir existente, mas
também do modo de produzir. É precisamente a este respeito que, com certa
simpatia, Marx aprova o significado do pensamento de Charles Fourier: “O
trabalho não pode se transformar em diversão, como Fourier gostaria, o que não
desmerece sua grande contribuição em ter expressado a substituição, não da
distribuição, mas do próprio modo de produzir, por uma forma superior, como o
objetivo último.” (24)
Assumindo que o “objetivo último” é a “derrubada” ou
superação do próprio modo de produzir, este deve incorporar as relações
capitalistas. Na verdade, a crítica de Marx a estas relações aponta, numa
passagem posterior, para a possibilidade de uma transformação histórica da
produção:
“Não é necessário um grande esforço para compreender que,
onde, e.g., o trabalho livre ou o trabalho assalariado resultado da dissolução
da servidão, é o ponto de partida, as máquinas surgem como antítese ao trabalho
vivo, como propriedade que lhe é alheia e como força que lhe é hostil; i.e.,
que elas devem confrontá-lo na condição de capital. Mas, da mesma forma é fácil
perceber que as máquinas não cessarão de ser agentes de produção social quando
se tornam, e.g., propriedade de trabalhadores associados. No primeiro caso,
porém, sua distribuição, i.e., em que elas não pertencem ao trabalhador,
obedece à mesma condição de ser do modo de produção baseado no trabalho
assalariado. No segundo caso, a modificação da distribuição se iniciaria a
partir de um fundamento da produção modificado, uma nova base a ser
primeiramente criada pelo processo da história.” (25)
A fim de entender mais claramente a natureza da análise de
Marx e alcançar o que ele quer dizer ao se referir à transformação do modo de
produzir, devemos examinar sua concepção quanto ao “fundamento” da produção
(capitalista). Isto é, devemos analisar sua noção de “modo de produção baseado
no trabalho assalariado” e refletir sobre o que poderia significar uma “base de
produção modificada”.
O núcleo fundamental
do capitalismo
Minha investigação da análise do capitalismo feita por Marx
inicia-se com uma seção crucialmente importante dos Grundrisse, intitulada
“Contradição entre a base da produção burguesa (valor como medida) e seu
desenvolvimento”. (26) Marx começa esta seção como se segue: “A troca de
trabalho vivo por trabalho objetivado -i.e., o posicionamento do trabalho
social na forma da contradição entre capital e trabalho assalariado – é o
desenvolvimento último da relação valor e da produção baseada no valor.” (27) O
título e a frase inicial desta seção dos Grundrisse indicam que, para Marx, a
categoria valor expressa as relações básicas de produção do capitalismo
-aquelas relações sociais que caracterizam a especificidade do capitalismo como
um modo de vida social -, bem como indicam que a produção no capitalismo está
baseada no valor. Em outras palavras, valor, na análise de Marx, constitui o
“fundamento da produção burguesa.”
Uma peculiaridade da categoria valor é que aparenta
expressar tanto uma determinada forma de relações sociais como uma forma
particular de riqueza. Qualquer análise do valor deve, portanto, esclarecer
ambos os aspectos. Temos observado que o valor, enquanto uma categoria de
riqueza, geralmente tem sido concebido como uma categoria do mercado. Contudo,
quando Marx se refere à “troca” no desenrolar da análise, quando da
consideração da “relação valor” nas passagens citadas, o faz tendo em vista o
processo capitalista de produção em si. A troca a qual se refere não é própria da
circulação, mas sim, à troca que ocorre na produção -“a troca de trabalho vivo
por trabalho objetivado”. Isto implica que o valor não deveria ser entendido
meramente como uma categoria do modo de distribuição de mercadorias, isto é,
como um argumento para fundamentar o automatismo do mercado auto regulável. Ao
contrário, deveria ser entendido como uma categoria da produção capitalista em
si. Parece, então, que a noção marxiana da contradição entre as forças e as
relações de produção deveria ser reinterpretada como se referindo a momentos
distinguíveis do processo de produção. O fato da “produção baseada no valor” e
“o modo de produção baseado no trabalho assalariado” parecerem estar
intimamente relacionados requer um exame mais aprofundado.
Quando Marx discute a produção baseada no valor, ele a
descreve como um modo de produção cujo “pressuposto é – e permanece sendo – a
quantidade de tempo de trabalho direto, a quantidade de trabalho empregado,
como o fator determinante da produção de riqueza.” (28) Segundo Marx, o valor,
como uma forma de riqueza, é caracterizado por ser constituído a partir do
dispêndio de trabalho humano direto no processo de sua produção – por
permanecer preso a tal dispêndio como o fator determinante na produção da
riqueza e por ter uma dimensão temporal. O valor é uma forma social que
expressa o, e está baseada no, dispêndio de tempo de trabalho direto. Para
Marx, esta forma está no coração da sociedade capitalista. Como uma categoria
das relações sociais fundamentais que constituem o capitalismo, o valor
expressa o que é, e permanece sendo, o fundamento básico da produção
capitalista. Todavia, surge uma crescente tensão entre este fundamento do modo
capitalista de produção e os resultados de seu próprio desenvolvimento
histórico:
“Porém, à medida que a grande indústria se desenvolve, a
criação de riqueza real vai depender menos do tempo de trabalho, e da
quantidade de trabalho empregado, e passa a depender mais da força produtiva
dos agentes [instrumentos] postos em movimento durante o tempo de trabalho,
cuja “potência efetiva” é, em si mesma, … desproporcional ao tempo de trabalho
direto gasto em sua produção; mas que depende, sobretudo, do estado geral da
ciência e do progresso da tecnologia… A riqueza real manifesta-se, excepcionalmente,
…na fantástica desproporção entre o tempo de trabalho aplicado e seu produto,
bem como no desequilíbrio qualitativo entre trabalho, reduzido a uma pura
abstração, e a capacidade produtiva do processo de produção que ele
supervisiona” (29)
O contraste entre valor e “riqueza real” – isto é, o
contraste entre a forma de riqueza que depende do “tempo de trabalho e do
montante de trabalho empregado” e outra que não depende – é crucial nestas
citações e para o entendimento da teoria do valor em Marx e sua concepção
quanto à contradição básica da sociedade capitalista. O contraste sugere
claramente que o valor não se refere à riqueza em geral, mas é uma categoria
historicamente específica e transitória que pretende expressar o fundamento da
sociedade capitalista. Além do mais, o valor não é somente uma categoria do
mercado, uma categoria que capta um modo particular da distribuição social da
riqueza. Tal interpretação, centrada no mercado – e que está próxima da posição
de Mill de que o modo de distribuição é mutável historicamente, mas o modo de
produção não o é – implica a existência de uma forma transhistórica de riqueza
diferentemente distribuída nas distintas sociedades. Porém, de acordo com Marx,
o valor é uma forma historicamente específica de riqueza social e está
intrinsecamente relacionada a um modo de produção historicamente específico.
Dizer que as formas de riqueza podem ser historicamente específicas significa,
obviamente, que a riqueza social não é a mesma em todas as sociedades. A
discussão de Marx sobre estes aspectos do valor sugere, como veremos, que a
natureza do trabalho e a verdadeira tessitura das relações sociais diferem em
várias formações sociais.
No decorrer deste trabalho, investigarei o caráter histórico
do valor e tentarei esclarecer a relação que Marx apresenta entre valor e tempo
de trabalho. Antecipando alguma coisa, muitos argumentos com respeito à análise
de Marx acerca da exclusividade do trabalho como a fonte de valor não
reconhecem sua distinção entre “riqueza real’ (ou “riqueza material”) e valor.
A “teoria do valor trabalho” de Marx, não obstante, não é uma teoria das
propriedades imanentes ao trabalho em geral, mas é uma análise da
especificidade histórica do valor como uma forma de riqueza e do trabalho que,
supostamente, a constitui. Consequentemente, é irrelevante para as pretensões
de Marx argumentar a favor ou contra sua teoria do valor, como se esta
significasse uma teoria do trabalho-riqueza (transhistórica) – isto é, como se
Marx tivesse escrito uma economia política em vez de uma crítica à economia
política. (30) Obviamente, isto não quer dizer que a interpretação da categoria
valor desenvolvida por Marx, como uma categoria historicamente específica,
comprove que sua análise da sociedade moderna esteja correta. Porém, requer que
a análise de Marx seja considerada em seus próprios termos, historicamente
determinados, e não como se fosse uma teoria transhistórica de economia
política, do tipo que ele criticou severamente.
O valor, no contexto da estrutura analítica de Marx, é uma
categoria crítica que revela a especificidade histórica da forma de riqueza e
da maneira de produzir características do capitalismo. O parágrafo
anteriormente citado mostra que, de acordo com Marx, o modo de produção baseado
no valor desenvolve-se de uma maneira tal que aponta para a possível negação
histórica do próprio valor. Marx argumenta que, no curso do desenvolvimento da
produção industrial capitalista, o valor torna-se menos e menos adequado como
uma medida da “riqueza real” produzida. Ele compara o valor, uma forma de
riqueza circunscrita ao dispêndio de tempo de trabalho humano, ao gigantesco
potencial de produção de riqueza associado à ciência e à tecnologia modernas. O
valor torna-se anacrônico, tendo em vista o potencial criado pelo sistema de
produção ao qual dá sustentação. A realização deste potencial acarreta a
abolição do valor.
Esta possibilidade histórica, no entanto, não significa
meramente que quantidades cada vez maiores de mercadorias poderiam ser
produzidas com base no modo de industrial produção existente e distribuídas
mais equitativamente. A lógica da crescente contradição entre “riqueza real” e
valor, que aponta para a possibilidade de que a primeira supere a segunda, como
a forma determinante de riqueza social, também implica na possibilidade de um
processo de produção diferente, um processo baseado numa mais nova e adequada
estrutura emancipatória do trabalho social:
“O trabalhador não mais se apresenta tão importante quanto
antes, para ser incluído no processo de produção; ao contrário, o ser humano
tende a se transformar muito mais num supervisor e regulador do processo de
produção em si … Ele se coloca ao lado do processo de produção em vez de seu
principal ator. Com esta transformação, o que ele conclui não é nem trabalho
humano direto e nem o tempo durante o qual ele trabalha. Ao contrário, em
virtude da inclusão enquanto um corpo social ocorre a apropriação de sua
capacidade produtiva geral, de sua compreensão da natureza e domínio sobre o
trabalho – em uma palavra, ocorre o desenvolvimento do indivíduo social que
surge como a grande pedra fundamental da produção e da riqueza. O roubo do
tempo de trabalho alheio, sobre o qual a riqueza presente está baseada, aparece
como uma desprezível pilastra frente a esta nova potência criada pela própria
indústria de larga escala.” (31)
A seção dos Grundrisse que estamos considerando deixa
extremamente claro que, para Marx, a superação do capitalismo envolve a
abolição do valor como a forma social de riqueza, a qual, por sua vez, exige a
superação do modo determinado de produzir desenvolvido sob o capitalismo.
Explicitamente afirma que a abolição do valor significa que o tempo de trabalho
não mais serviria como medida de riqueza, e que a produção de riqueza não mais
seria efetuada primordialmente pelo trabalho humano direto aplicado ao processo
de produção: “Tão logo o trabalho na sua forma direta tenha cessado de ser a
grande fonte de riqueza, o tempo de trabalho deixa e deve deixar de ser sua
medida e, por conseguinte, o valor de troca (deve deixar de ser a medida) do
valor de uso.” (32)
Em outras palavras, com sua teoria do valor, Marx analisa as
relações sociais básicas do capitalismo, sua forma de riqueza e sua forma
material de produção, como estando inter-relacionadas. De acordo com a análise
de Marx, como a produção se apoia no valor, o modo de produção fundado no
trabalho assalariado e a produção industrial baseada no trabalho proletário
estão intrinsecamente relacionados. Sua concepção do caráter crescentemente anacrônico
do valor também se estende ao caráter crescentemente anacrônico do processo
industrial de produção desenvolvido sob o capitalismo. A superação do
capitalismo, de acordo com Marx, acarreta uma transformação fundamental da
forma material de produção, no modo como as pessoas trabalham.
Esta posição difere fundamentalmente do marxismo tradicional
que, conforme já foi observado, concentra sua crítica apenas na transformação
do modo de distribuição e trata o modo industrial de produção como uma evolução
técnica que se torna incompatível com o capitalismo. No que foi apresentado até
aqui fica óbvio que Marx não tratou a contradição do capitalismo como sendo uma
contradição entre a produção industrial e o valor, isto é, entre a produção
industrial e as relações sociais capitalistas. Ao contrário, considerou a
primeira moldada pela segunda: a produção industrial é o “modo de produção
baseado no valor”. É neste sentido que, em seus últimos escritos, Marx
refere-se, explicitamente, ao modo industrial de produção como uma “forma de
produção especificamente capitalista …(também ao nível tecnológico)” (33) e, em
assim fazendo, dá a entender que deve ser transformado com a superação do
capitalismo.
Obviamente, o significado das categorias básicas de Marx não
pode ser resumido em poucas palavras. A segunda metade deste livro será
dedicada à elaboração de sua análise do valor e do papel desta categoria na
conformação do processo de produção. Neste momento, simplesmente observaria que
a teoria crítica de Marx, como está expressa nessas passagens dos Grundrisse,
não é uma forma de determinismo tecnológico, pois trata a tecnologia e o
processo de produção como socialmente constituídos, no sentido de que são
amoldados pelo valor. Portanto, não deveriam ser absolutamente identificados
com a noção de Marx de “forças produtivas”, as quais entram em contradição com
as relações sociais capitalistas. Apesar disso, incorporam uma contradição: a
análise de Marx estabelece uma distinção entre a realidade da forma de produção
constituída pelo valor e seu potencial – um potencial que fundamenta a
possibilidade de um novo modo de produção.
Está claro, a partir das citadas passagens dos Grundrisse
que, quando Marx descreve a superação da contradição do capitalismo e afirma
que a “massa de trabalhadores deve, por ela mesma, se apropriar de seu próprio
trabalho excedente”, (34) ele está se referindo não apenas à expropriação da
propriedade privada e ao uso do produto excedente de uma maneira mais racional,
humana e eficiente. A apropriação à qual se refere vai muito além disso, pois
também envolve a aplicação reflexiva das forças produtivas desenvolvidas sob o
capitalismo, ao próprio processo de produção. Isto é, ele vislumbra que o
potencial embutido na produção capitalista avançada poderia tornar-se o meio
pelo qual o próprio processo de produção industrial poderia ser transformado; o
meio pelo qual o sistema de produção social, no qual a riqueza é criada através
da apropriação do tempo de trabalho direto e do trabalho dos operários, como dentes
de engrenagem de um aparato produtivo, poderia ser abolido. De acordo com Marx,
estes dois aspectos do modo de produção industrial capitalista estão
relacionados. Por conseguinte, a superação do capitalismo, conforme apresentada
nos Grundrisse, implicitamente envolve a superação tanto dos aspectos formais,
quanto dos aspectos materiais do modo de produção fundado no trabalho
assalariado. Ela acarreta a abolição de um sistema de distribuição baseado na
troca de força-de-trabalho, enquanto uma mercadoria, por um salário com o qual
os meios de consumo são adquiridos; também acarreta a abolição de um sistema de
produção baseado no trabalho proletário, isto é, baseado no tipo de trabalho
unilateral e fragmentado, característico da produção capitalista industrial. A
superação do capitalismo, em outras palavras, também envolve a superação do
trabalho concreto realizado pelo proletariado.
Esta interpretação, na medida em que fornece a base para uma
crítica histórica da forma concreta de produção no capitalismo, lança luz sobre
a bem conhecida afirmação de Marx de que a formação social capitalista sinaliza
o fim da pré-história da sociedade humana. (35) A ideia da superação do
trabalho proletário implica que a “pré-história” deveria ser entendida como se
referindo àquelas formações sociais nas quais a produção de excedente continua
a existir e está baseada primordialmente no trabalho humano direto. Esta
característica é compartilhada por sociedades nas quais o excedente é criado
pelo escravo, pelo servo ou pelo trabalhador assalariado. Todavia, de acordo
com Marx, a formação baseada no trabalho assalariado caracteriza-se por possuir
uma dinâmica que lhe é exclusiva, a partir da qual emerge a possibilidade
histórica de que a produção excedente baseada no trabalho humano como um
elemento imanente ao processo de produção, possa ser superada. Uma nova
formação social pode ser criada na qual o “trabalho excedente da massa tenha
cessado de ser a condição para o desenvolvimento da riqueza geral, da mesma
forma que o não-trabalho de poucos, tenha deixado de ser a condição para o
desenvolvimento das potencialidades gerais do cérebro humano.” (36)
Para Marx, então, o fim da pré-história significa a
superação da separação e oposição entre trabalho manual e intelectual. No entanto,
dentro do quadro de sua crítica histórica, esta oposição não pode ser superada
simplesmente com a junção do trabalho manual e do trabalho intelectual, como
praticados na atualidade (por exemplo, como enaltecido na República Popular da
China nos anos de 1960). Nos Grundrisse, o tratamento dado por Marx à produção
demonstra que não apenas a separação destas modalidades de trabalho, mas também
as características determinantes de cada uma delas, estão enraizadas na forma
de produção dominante. A separação somente poderia ser superada mediante a
transformação das modalidades de trabalho manual e intelectual existentes, isto
é, pela constituição histórica de uma nova estrutura e organização social do
trabalho. Tal nova estrutura toma-se possível, de acordo com a análise de Marx,
quando a produção excedente não mais estiver necessária e primordialmente
baseada no trabalho humano direto.
Capitalismo,
trabalho e dominação
A teoria social de Marx – em oposição à posição marxista
tradicional – conduz, dessa maneira, a uma análise crítica do modo de produzir
desenvolvido sob o capitalismo e à possibilidade de sua transformação radical.
Claramente, isso não significa a glorificação produtivista desse modo de
produzir. Marx, ao tratar o valor como uma categoria historicamente determinada
de um modo de produção específico, e não apenas como um modo de distribuição,
sugere – e isto é crucial – que o trabalho que produz valor não deveria ser
identificado com trabalho como se este existisse transhistoricamente. Ao contrário,
trata-se de uma forma historicamente específica que seria abolida, não
realizada, com a superação do capitalismo. A concepção de Marx acerca da
especificidade histórica do trabalho no capitalismo requer uma reinterpretação
fundamental de sua compreensão das relações sociais que caracterizam esta
sociedade. Estas relações são, segundo Marx, constituídas pelo próprio trabalho
e, consequentemente, têm um caráter peculiar, quase-objetivo; e não podem ser
completamente apreendidas em termos de relações de classe.
No que diz respeito às relações sociais fundamentais do
capitalismo, as diferenças entre a interpretação “categorial” e aquelas
“centradas em classes” são consideráveis. A primeira refere-se a uma crítica do
trabalho no capitalismo; a segunda, uma crítica do capitalismo do ponto de
vista do trabalho. Essas interpretações embutem concepções bastante diferentes
acerca do modo de dominação determinante no capitalismo e, por conseguinte,
quanto à natureza de sua superação. As consequências dessas diferenças
tornar-se-ão mais claras à medida que analiso mais de perto a discussão de Marx
sobre como o caráter específico do trabalho no capitalismo constitui suas
relações sociais básicas e como ele é imanente, tanto à especificidade do
valor, enquanto uma forma de riqueza, quanto a natureza do modo industrial de
produzir. O caráter específico do trabalho – dando um pequeno salto adiante
neste momento – também constitui a base para uma forma de dominação social
historicamente específica, abstrata e impessoal.
Na análise de Marx, a dominação social no capitalismo, em
seu nível mais fundamental, não consiste na dominação das pessoas por outras
pessoas, mas na dominação de pessoas por estruturas sociais abstratas
constituídas pelas próprias pessoas. Marx procurou desvendar esta forma de
dominação abstrata, estrutural – que envolve e se estende para além da
dominação de classe – com suas categorias, a mercadoria e o capital. Esta
dominação abstrata não somente determina a finalidade da produção no
capitalismo, segundo Marx, como também sua forma material. Dentro do contexto
do quadro de análise de Marx, a forma de dominação social que caracteriza o
capitalismo não é, em última instância, uma decorrência da propriedade privada,
da propriedade dos meios de produção e da apropriação do produto excedente
pelos capitalistas. Ao contrário, [a dominação] está fundamentada na forma
valor da própria riqueza, uma forma de riqueza social que contrapõe o trabalho
vivo (os trabalhadores) a uma força estruturalmente alheia e dominante. (37)
Tentarei mostrar como, para Marx, esta oposição entre a riqueza social e as
pessoas está baseada no caráter específico do trabalho na sociedade
capitalista.
De acordo com Marx, o processo pelo qual o trabalho no
capitalismo molda estruturas sociais abstratas que dominam as pessoas é o mesmo
que impulsiona um rápido desenvolvimento histórico nas forças produtivas e no
conhecimento da humanidade. Todavia, isso assim ocorre mediante a fragmentação
do trabalho social – isto é, a expensas da limitação e da redução da
importância do indivíduo em particular. (38) Marx argumenta que a produção
baseada no valor cria enormes possibilidades de riqueza, mas somente
“estabelecendo …a totalidade do tempo de um indivíduo enquanto tempo de
trabalho, [o que resulta em] sua degradação, por conseguinte, à condição de
mero trabalhador.” (39) Sob o capitalismo a capacidade e o conhecimento da
humanidade são acrescidos enormemente, mas de uma forma alienada que oprime as
pessoas e tende a destruir a natureza. (40)
Desse modo, uma marca central do capitalismo é que as
pessoas realmente não controlam sua própria atividade produtiva ou o que elas
produzem, mas são, em última instância, dominadas pelos resultados desta
atividade. Esta forma de dominação é expressa como uma contradição entre
indivíduos e sociedade e constituída como uma estrutura abstrata. A análise de
Marx sobre esta forma de dominação é uma tentativa de fundamentar e explicar o
que ele tratou como sendo alienação em seus primeiros escritos. Sem entrar numa
discussão extensiva da relação entre os escritos iniciais de Marx e sua análise
crítica mais recente, tentarei mostrar que não foram abandonados os temas
centrais contidos nos trabalhos iniciais, mas sim que alguns – por exemplo, a
alienação – permanecem centrais em sua teoria. Na verdade, somente nos
trabalhos mais recentes é que Marx fundamenta rigorosamente a posição que ele
apresenta nos Economic and Philosophic Manuscripts of 1844 especialmente, que a
propriedade privada não é a causa social, mas a consequência do trabalho
alienado e que, portanto, a superação do capitalismo não deveria ser concebida
somente em termos da abolição da propriedade privada, mas deve acarretar a
superação de tal trabalho. (41) Ele fundamenta esta posição em suas últimas contribuições
com a análise do caráter específico do trabalho no capitalismo. Todavia, esta
análise também exige uma modificação na sua noção inicial da alienação. A
teoria da alienação implícita na teoria crítica madura de Marx não se refere à
alienação daquilo que previamente existia como propriedade dos trabalhadores (e
que, portanto, deveria ser exigida por eles). Ao contrário, refere-se ao
processo de constituição histórica de capacidades e de conhecimentos sociais
que não pode ser compreendido com referência às imediatas habilidades e
destrezas do proletariado. Com sua categoria o capital, Marx analisou como
essas capacidades e conhecimento sociais são moldadas em formas objetivadas que
se tornam quase independentes e exercem um tipo de dominação social abstrata
sobre os indivíduos que as constituem.
Esse processo de dominação estrutural autogerado não pode
ser plenamente apreendido em termos de exploração e dominação de classe, nem
pode ser entendido em termos estáticos, não tendenciais e “sincrônicos”. A
forma fundamental de dominação social caracterizante da sociedade moderna,
aquela que Marx analisou em termos do valor e do capital, é a forma que gera
uma dinâmica histórica para além do controle dos indivíduos que a constituem.
Um impulso central dado por Marx com a análise da especificidade do trabalho na
sociedade capitalista foi explicar essa dinâmica histórica: não simplesmente
como uma teoria da exploração ou do funcionamento da economia, limitadamente
entendidas. A teoria crítica do capital em Marx é uma teoria da natureza da
história da sociedade moderna. Ela trata a história como sendo socialmente
constituída e, além disso, possuindo uma lógica de desenvolvimento quase
autônoma.
Esta discussão preliminar implica numa compreensão da
superação da alienação muito diferente daquela colocada pelo marxismo
tradicional. Ela sugere que Marx considerou o modo industrial de produção
desenvolvido sob o capitalismo, e a dinâmica histórica intrínseca desta
sociedade, como características da formação social capitalista. A negação
histórica desta formação social acarretaria, então, a abolição tanto do sistema
historicamente dinâmico de dominação abstrata, quanto do modo capitalista
industrial de produção. Na mesma linha, a teoria da alienação desenvolvida por
Marx traz implícito que ele percebia a negação do núcleo estrutural do
capitalismo como possibilidade para a apropriação pelo povo das competências e
conhecimento que haviam sido constituídos historicamente de forma alienada. Tal
apropriação acarretaria a transcendência material do primeiro fosso constituído
entre o indivíduo limitado e empobrecido e o conhecimento produtivo geral
alienado da sociedade, mediante a incorporação deste àquele. Isso permitiria ao
“mero trabalhador” (42) tornar-se um “indivíduo social” (43) – um indivíduo que
incorpora o conhecimento e a potencialidade do homem, desenvolvidos
historicamente de uma forma alienada.
O conceito de indivíduo social expressa a ideia de Marx de
que a superação do capitalismo acarreta a superação da oposição entre indivíduo
e sociedade. De acordo com sua análise, tanto o indivíduo burguês como a
sociedade entendida como um todo abstrato confrontando os indivíduos, foram
constituídos à medida que o capitalismo substituiu formas anteriores de vida
social. Para Marx, entretanto, a superação desta oposição não acarretaria nem a
subsunção do indivíduo à sociedade, nem sua individualidade não mediada. A
crítica marxiana da relação entre o indivíduo e a sociedade no capitalismo não
está, conforme tem sido comumente afirmada, limitada à crítica do indivíduo
burguês isolado e fragmentado. Da mesma forma que Marx não critica o
capitalismo do ponto de vista da produção industrial, ele não avaliou
positivamente a coletividade, na qual todas as pessoas participam, como o ponto
inicial da crítica ao indivíduo atomizado. Além de relacionar a constituição
histórica do indivíduo monádico* à esfera da circulação de mercadorias, Marx
também analisa o mega-aparato, no qual as pessoas são meros dentes de
engrenagens, como característico da esfera da produção dominada pelo capital.
(44) Tal coletividade, de forma alguma, representa a superação do capitalismo.
A oposição entre o indivíduo atomizado e a coletividade (com uma espécie de
“super sujeito”), portanto, não representa a oposição entre o modo de vida
social no capitalismo e o modo de vida numa sociedade pós-capitalista. Ao
contrário, é a oposição de duas conceituações unilaterais da relação entre
indivíduo e sociedade que juntas constituem outra antinomia da formação social
capitalista.
Para Marx, o indivíduo social representa a superação desta
contradição. Esta noção não se refere simplesmente a uma pessoa que trabalha
comunitária e altruisticamente com outras pessoas; na verdade, expressa a
possibilidade de que cada pessoa exista como um ser humano completo e
amplamente desenvolvido. Uma condição necessária para a realização desta
possibilidade é que o trabalho de cada pessoa seja plena e efetivamente auto
constituído, de tal maneira que corresponda à riqueza geral, à diversidade, à
competência e ao conhecimento da sociedade como um todo. O trabalho individual
não mais seria a base fragmentada para a riqueza da sociedade. A superação da
alienação acarreta, então, não retomar a posse de uma essência que existira
anteriormente, mas a apropriação do que fora constituído de forma alienada.
Desse modo, a discussão até aqui apresentada, revela que
Marx viu o próprio trabalho proletário como uma expressão materializada do
trabalho alienado. Tal posição sugere que, na melhor das hipóteses, seria
ideológico afirmar que a emancipação do trabalho estaria realizada logo que a
propriedade privada fosse abolida e as pessoas tivessem uma atitude coletiva,
socialmente responsável com relação ao seu trabalho – com o trabalho concreto
de cada um permanecendo o mesmo que era sob o capitalismo. Ao contrário, a
emancipação do trabalho pressupõe uma nova estrutura de trabalho social. Dentro
do sistema analítico de Marx, o trabalho pode ser constitutivo do indivíduo
social somente quando o potencial das forças produtivas for usado de tal forma
que revolucione completamente a organização do próprio processo de trabalho. As
pessoas deverão ser capazes de controlar e administrar o processo de trabalho
direto no qual haviam anteriormente trabalhado como uma peça do conjunto. O
controle do “processo da natureza, transformado em um processo industrial” (45)
deve estar disponível não somente para a sociedade como um todo, mas para todos
os seus membros. Uma condição material necessária para o pleno desenvolvimento
de todos os indivíduos é que “o tipo de trabalho no qual um ser humano faz
aquilo que uma coisa pode fazer tenha cessado.” (46)
A noção de Marx da apropriação pela “massa de trabalhadores
…de seu próprio trabalho excedente,” (47) acarreta, então, um processo de auto
abolição enquanto um processo de autotransformação material. Longe de
significar a realização do proletariado, a superação do capitalismo envolve a
abolição material do trabalho proletário. A emancipação do trabalho requer a
emancipação com relação ao trabalho (alienado).
No decorrer de nossas investigações, observaremos que o
capitalismo, na análise de Marx, é uma formação social na qual a produção
social é um fim em si mesmo, enquanto o indivíduo, por sua vez, trabalha a fim
de consumir. Minha discussão até aqui implica que Marx visualizou a
substituição do capitalismo por uma formação social na qual a produção social
se destine ao consumo e que o trabalho do indivíduo seja suficientemente
satisfatório e que atenda suas próprias necessidades. (48)
A contradição do
capitalismo
A sociedade socialista, de acordo com Marx, não emerge como
o resultado de um desenvolvimento histórico evolucionário, linear. A
transformação radical do processo de produção esboçado anteriormente não é uma
consequência automática do rápido crescimento do conhecimento científico e
tecnológico ou de sua aplicação. Ao contrário, é uma possibilidade que decorre
de uma crescente e intrínseca contradição social.
Qual é a natureza dessa contradição? É claro que, para Marx,
a possibilidade uma nova estrutura emancipatória do trabalho social surge no
decorrer do desenvolvimento capitalista, mas que sua realização geral é
impossível sob o capitalismo:
“O capital em si mesmo é a contradição em processo [na] qual
age no sentido de reduzir o tempo de trabalho a um mínimo, enquanto, por outro
lado, requer o trabalho como fonte e o tempo de trabalho como única medida de
riqueza. Por conseguinte, diminui o tempo de trabalho relacionado a sua parte
necessária de modo a aumentar aquela parte na forma supérflua. Portanto, requer
o supérfluo, em medida crescente, como uma condição – uma questão de vida ou
morte – para o necessário.” (49)
Mais adiante considerarei detalhadamente a questão do tempo
de trabalho “necessário” e “supérfluo”. Aqui é suficiente observar que, segundo
Marx, embora o capitalismo tenda a desenvolver poderosas forças produtivas,
cujo potencial, de forma crescente, torna obsoleta uma organização da produção
baseada no dispêndio de tempo de trabalho direto, não possibilita a realização
completa destas forças. A única forma de riqueza constituída pelo capital é
aquela baseada no dispêndio de tempo de trabalho direto. Por conseguinte, o
valor, apesar de sua crescente inadequação como uma medida da riqueza material produzida,
não é naturalmente substituído por uma nova forma de riqueza. Para Marx, em vez
disso, permanece como a pré-condição estrutural necessária da sociedade
capitalista (embora, como ele argumenta no Livro III d’ O Capital, esta não é a
questão central). Assim, embora o capitalismo seja caracterizado por uma
dinâmica expansionista intrínseca, esta dinâmica permanece limitada ao
capitalismo; não é auto superável. O que se toma “supérfluo” em um nível,
permanece “necessário” no outro: em outras palavras, o capitalismo prepara a
possibilidade de sua própria negação, mas não a realiza, evoluindo
automaticamente para algo diferente. Como o dispêndio de tempo de trabalho
humano direto permanece central e indispensável, mesmo tendo se tornado
anacrônico em virtude do desenvolvimento do capitalismo, dá origem a uma tensão
interna. Como elaborarei posteriormente, Marx analisa a natureza da produção
industrial e sua trajetória evolutiva, tomando esta tensão por referência.
Esta importante dimensão da contradição fundamental do
capitalismo, conforme entendida por Marx, sugere que a mesma não deveria ser
identificada imediatamente com as relações sociais concretas de antagonismo ou
conflito, tais como as relações de luta de classes. Uma contradição fundamental
é intrínseca aos elementos estruturantes da sociedade capitalista; ela
transmite uma dinâmica contraditória para o todo e prepara a possibilidade
imanente de uma nova ordem social. As passagens citadas indicam, além disso,
que a concepção de Marx, com respeito à contradição estrutural entre as forças
e as relações de produção, não deveria ser interpretada da maneira tradicional,
na qual, “as relações de produção” são entendidas apenas em termos do modo de
distribuição, e as “forças de produção” identificadas com o modo industrial de
produção, vistas como um processo puramente técnico. Dentro de tal
interpretação, os resultados da liberação dessas “forças” de seus correlatos
“grilhões”, corresponderiam, presumivelmente, a uma aceleração da dinâmica de
produção, baseada na mesma forma concreta do processo de produção e da mesma
estrutura do trabalho. Todavia, as passagens dos Grundrisse discutidas
anteriormente sugerem que Marx trata o modo industrial de produção e a dinâmica
histórica do capitalismo como feições características da sociedade capitalista,
e não como desenvolvimentos históricos apontando para além das relações
capitalistas, porém inibidos pelas mesmas. No que lhe é mais essencial, a
compreensão de Marx com relação à contradição do capitalismo não parece
referir-se essencialmente a uma contradição entre apropriação privada e
produção socializada, (50) porém a uma contradição no interior da própria
esfera de produção, através da qual, esta esfera inclui o processo imediato de
produção e a estrutura de relações sociais constituída pelo trabalho no
capitalismo. Em sendo assim, no que se relaciona à estrutura do trabalho
social, a contradição marxiana deveria ser entendida como uma contradição
crescente entre o tipo de trabalho que as pessoas executam sob o capitalismo e
o tipo de trabalho que poderiam executar, caso o valor fosse abolido e o
potencial produtivo desenvolvido sob o capitalismo reflexivamente utilizado
para libertar as pessoas da dominação das estruturas alienadas constituídas por
seu próprio trabalho.
No decorrer deste trabalho, mostrarei como Marx situa esta
contradição na forma social fundamental estruturante do capitalismo (isto é, a
mercadoria), e elaborarei uma análise de como, para Marx, a “liberação” das
forças de produção dos “grilhões” das relações de produção requer a abolição,
tanto do valor, quanto do caráter específico do trabalho no capitalismo. Isto
acarretaria a negação da lógica histórica intrínseca, bem como a negação do
modo industrial de produção, ambos característicos da formação social
capitalista.
Esta exposição preliminar da noção de alienação em Marx e da
contradição do capitalismo sugere que sua análise procura desvendar o curso do
desenvolvimento capitalista como um desenvolvimento que tem dois lados: um de
enriquecimento e outro de empobrecimento. Isso implica que este desenvolvimento
não pode ser adequadamente apreendido de uma maneira unidimensional, seja como
o progresso do conhecimento e da felicidade, ou como o “progresso” da dominação
e da destruição. De acordo com sua análise, embora forneça a possibilidade
histórica de que a prática do trabalho social pudesse ser enriquecedora para
todos, o trabalho social, efetivamente, tornou-se empobrecedor para a maioria.
O rápido crescimento do conhecimento científico e tecnológico sob o capitalismo
não significa, portanto, um progresso linear na direção da emancipação. De
acordo com a análise da mercadoria e do capital, feita por Marx, tal elevação
do conhecimento – por si, socialmente constituído tem levado à fragmentação e
ao esvaziamento do trabalho individual e ao crescente controle da humanidade
pelos resultados de sua atividade materializada. Ao mesmo tempo, também,
aumentou a possibilidade de que o trabalho pudesse ser enriquecedor,
individualmente, e que a humanidade pudesse exercer maior controle sobre o seu
próprio destino. Este desenvolvimento ambivalente está enraizado na estrutura
alienada da sociedade capitalista e pode ser superado. A análise dialética de
Marx, portanto, não deveria ser, de maneira alguma, identificada com a fé
positivista no progresso científico linear e no progresso social, ou em sua
relação recíproca. (51)
Assim, a análise de Marx implica numa ideia de superação do
capitalismo que não acarreta, nem a afirmação sem crítica de que a produção industrial
seja condição de progresso humano, nem a rejeição romântica do progresso
tecnológico per si. Ao sugerir que o potencial do sistema de produção
desenvolvido sob o capitalismo poderia ser usado para transformar o próprio
sistema, a análise de Marx supera a oposição entre essas instâncias e mostra
que cada uma significa um momento de um desenvolvimento histórico muito mais
complexo para se constituir a totalidade. Isto é, a abordagem de Marx abrange a
oposição entre a fé no progresso linear e sua rejeição romântica, como
expressando uma antinomia histórica que, em ambos os termos, é característica
da época capitalista. (52) Mais abrangente, sua teoria crítica não defende nem
a simples conservação, nem a destruição daquilo que foi historicamente constituído
no capitalismo. Ao contrário, sua teoria mostra a possibilidade de que, o que
foi constituído de forma alienada, seja apropriado e, em consequência disso,
fundamentalmente transformado.
Movimentos sociais,
subjetividade e análise histórica
Esta interpretação da análise de Marx acerca do capitalismo
e da natureza da sua contradição fundamental restabelece a questão que permeia
a relação entre classes sociais, movimentos sociais e a possibilidade de
superação do capitalismo. Ao se contrapor às análises nas quais o modo
industrial de produção é visto, fundamentalmente, em situação de tensão com o
capitalismo, a abordagem aqui apresentada rejeita a ideia de que o proletariado
representa uma contraposição social ao capitalismo. De acordo com Marx, as
manifestações da luta de classes, entre os representantes do capital e os
trabalhadores, em torno de questões relacionadas à jornada de trabalho ou da
relação entre salários e lucros, por exemplo, são estruturalmente intrínsecas
ao capitalismo, por conseguinte, um importante elemento constitutivo da
dinâmica deste sistema. (53) Apesar disso, sua análise do valor,
necessariamente, assegura-nos que a base do capital é, e continua sendo, o
trabalho proletário. Este tipo de trabalho, por conseguinte, não é a base da
negação potencial da formação social capitalista. A contradição no capitalismo,
conforme apresentada nos Grundrisse, não é entre o trabalho proletário e o
capitalismo, mas entre o trabalho proletário – isto é, a estrutura de trabalho
existente – e a possibilidade de outro modo de produção. A crítica aqui
apresentada ao socialismo – este concebido como uma maneira mais justa, humana
e eficiente de administrar o modo industrial de produção que se erigiu com o
capitalismo – é também, pelo mesmo motivo, uma crítica à concepção de que o
proletariado é um Sujeito revolucionário, no sentido de ser um agente social
que tanto constrói a história, como se auto realiza no socialismo.
Isto implica que não existe um continuum linear entre as
lutas e concepções da classe trabalhadora, se constituindo e se auto afirmando
historicamente, e as necessidades, lutas e concepções que se apresentarem para
além do capitalismo. Estas últimas – que deveriam incluir a necessidade de uma
atividade auto realizadora, por exemplo – não poderiam ficar limitadas à esfera
do consumo e às questões de justiça distributiva, mas deveriam questionar a
natureza do trabalho e a estrutura dos constrangimentos que caracterizam o
capitalismo. Isto sugere que uma teoria crítica ao capitalismo e a sua possível
superação deve acarretar uma teoria da constituição social de tais necessidades
e das formas subjacentes de consciência – uma teoria que seja capaz de se
reportar às transformações qualitativas históricas ocorridas na subjetividade e
de compreender os movimentos sociais nestes termos. Tal abordagem poderia
lançar nova luz acerca da ideia de Marx sobre a auto abolição do proletariado e
poderia ser útil para analisar os novos movimentos sociais das últimas duas
décadas.
As categorias da teoria crítica em Marx, quando
interpretadas como categorias das formas de práticas estruturadas enquanto
determinações tanto da “objetividade” social quanto da “subjetividade” (ao
invés de serem consideradas apenas como categorias da “objetividade” social, e menos
ainda, como categorias económicas), podem fornecer a base para uma espécie de
teoria histórica da subjetividade. Em tal leitura, a análise do caráter
dinâmico do capitalismo é também, possivelmente, uma análise das transformações
históricas da subjetividade. Se, além disso, as formas sociais que estruturam a
sociedade capitalista podem ser mostradas como contraditórias, torna-se
possível tratar a consciência crítica e de contraposição como sendo socialmente
constituída.
Contudo, esta interpretação da contradição marxiana, como
sendo tanto “objetiva” quanto “subjetiva”, não deveria ser adotada dando a
entender que a consciência de contraposição necessariamente emergirá, e muito
menos, que a emancipação será automaticamente alcançada. O interesse aqui revelado
não está voltado para o nível teórico de probabilidade, por exemplo, a
probabilidade de que tal consciência venha a emergir. Ao contrário, estou
considerando o nível de possibilidade, significando a formulação mais
fundamental de uma abordagem do problema da constituição social da
subjetividade, incluindo a possibilidade de uma consciência crítica ou de
contraposição. A ideia de contradição abre espaço para uma teoria que
estabeleça, socialmente, a possibilidade de tal consciência. Se a sociedade capitalista
não é concebida como sendo um todo homogêneo, e se suas formas sociais não são
consideradas “unidimensionais”, pode-se analisar formas de consciência crítica
e de contraposição como possibilidades socialmente constituídas.
Tal teoria da constituição social da subjetividade
(incluindo a subjetividade crítica com relação a seu próprio contexto) está em
oposição à noção, implicitamente funcionalista, de que somente a consciência
que afirma ou perpetua a ordem existente é socialmente formada. Opõe-se,
também, à noção, dissimuladamente relacionada à primeira, de que a
possibilidade de uma consciência crítica, de contraposição ou revolucionária
deve estar enraizada ontológica ou transcendentalmente – ou, no mínimo, baseada
em elementos da vida social que sejam, aparentemente, não capitalistas. A
abordagem que esboçarei não nega a existência ou importância de tendências
pontuais, não capitalistas, que podem introduzir alguma heterogeneidade na
ordem dominante e promover uma crítica localizada a esta ordem. Porém, fornece
a base para uma crítica àquelas tentativas teóricas que se concentram
exclusivamente em tais tendências, porque estas consideram o capitalismo como
sendo um todo homogêneo. Considerando que tais abordagens ao problema da
resistência e da contraposição concebem a sociedade capitalista como sendo
apenas coisificada e deformada, e que tratam o pensamento crítico e as práticas
sociais como historicamente indeterminadas, a análise do capitalismo, enquanto
uma sociedade contraditória, procura mostrar que as possibilidades para uma
crítica localizada e para a pluralidade são geradas socialmente, do interior da
estrutura do próprio capitalismo. Tal análise aponta o fundamento para uma
teoria histórica da subjetividade (incluindo formas contrárias de
subjetividade) que, em meu julgamento, é muito mais poderosa que as tentativas
teóricas que pressupõem um simples antagonismo entre a ordem social existente e
as formas críticas de subjetividade e de práticas. Esta abordagem permite ainda
investigar as várias concepções e práticas críticas em relação ao respectivo
contexto histórico – em termos da constituição de tais concepções e práticas,
bem como de seus possíveis efeitos históricos – e, através disso, permite
considerar o papel que tais subjetividade e práticas de contraposição teriam
desempenhado em relação à possível determinada negação do capitalismo. Em
síntese, tal abordagem permite analisar a possibilidade de que a ordem
existente possa ser transformada.
Nesse sentido, olhar o capitalismo como contraditório, abre
espaço para uma crítica social que seja consistente auto reflexivamente e que
compreenda a si mesma com referência a seu contexto. Este enfoque dá condições
para analisar a relação intrínseca, embora mediada, entre a teoria crítica e a
emergência de necessidades e formas de consciência oposicionista construídas em
nível popular e que neguem o capital. Tal teoria social da subjetividade
reflexiva, contrasta fortemente com aquelas críticas que não podem servir de
base para a possibilidade de emergir uma consciência fundamentalmente
antagônica à ordem existente, ou o faz somente com extremo objetivismo,
enfatizando, implicitamente, uma posição privilegiada de pensadores críticos
cujo conhecimento, inexplicavelmente, tem escapado da desfiguração social. Tais
abordagens retroagem às antinomias do materialismo do Iluminismo, criticado por
Marx nas “Teses sobre Feuerbach”, segundo a qual uma população é dividida nos
muitos que são socialmente reconhecidos e os poucos críticos que, por alguma
razão, não o são. (54) Também representam, implicitamente, um tipo de crítica
social epistemologicamente inconsistente, que não pode levar em conta a própria
existência e deve apresentar-se sob a forma de uma postura trágica ou de uma
pedagogia de vanguarda.
Algumas implicações
na atualidade
Gostaria de apresentar, brevemente, algumas das implicações
mais profundas da interpretação da teoria crítica de Marx, baseada nos
Grundrisse, que comecei a esboçar. Ao enfocar o tipo de trabalho historicamente
específico do capitalismo, lança o fundamento para um conceito de capital e
para um entendimento da dinâmica da formação social capitalista, que não
depende essencialmente do modo de distribuição mediado pelo mercado – em outras
palavras, a interpretação permite uma análise do capitalismo que não está presa
a suas formas encontradas no Século XIX. Tal abordagem poderia fornecer as
bases para analisar, enquanto capitalista, a natureza e a dinâmica da sociedade
moderna num período em que as instituições estatais e as grandes organizações
burocráticas tornaram-se agentes importantes, às vezes os principais agentes,
da regulação social e da distribuição. Poderia também servir como ponto de
partida para a compreensão das atuais transformações sociais e econômicas
globais, enquanto transformações do capitalismo.
Além disso, Marx, ao se concentrar na crítica à produção,
cria condições para recuperar sua ideia de socialismo como uma forma de vida
social pós-capitalista. Tenho argumentado que a relação histórica entre o
socialismo e o capitalismo, para Marx, não é simplesmente uma questão das
pré-condições históricas para a abolição da propriedade privada dos meios de
produção e a substituição do mercado pelo planejamento. Esta relação pode,
também, ser concebida em termos da crescente possibilidade de que o papel
historicamente específico do trabalho no capitalismo pudesse ser substituído
por outra forma de mediação social. Tal possibilidade, de acordo com Marx, está
fundamentada numa crescente tensão entre valor e “riqueza real”, gerada pelo
desenvolvimento capitalista. Esta tensão aponta para a possível abolição
sistêmica do valor e, por conseguinte, da dominação abstrata, bem como da
necessidade abstrata de uma forma particular de “crescimento”, e do trabalho humano
direto como um elemento interno à produção. O fundamento material de uma
sociedade sem classes, de acordo com a exposição de Marx, nos Grundrisse, é uma
forma de produção na qual o produto excedente não mais é criado primordialmente
pelo trabalho humano direto. De acordo com esta abordagem, a questão crucial do
socialismo não é se existe uma classe capitalista, mas se o proletariado
continua existindo.
As teorias críticas do capitalismo que tratam somente da
superação do modo de distribuição burguês não podem captar plenamente esta
dimensão do capitalismo e, o que é pior, podem encobrir o fato de que a
superação da sociedade de classes exige a superação do modo de produzir. Assim,
uma variante do marxismo tradicional tornou-se uma ideologia legitimadora
daquelas formas sociais – os países “socialistas realmente existentes” – nas
quais o modo liberal burguês de distribuição foi abolido, mas o modo de
produzir determinado pelo capital não o foi, e a abolição do primeiro serviu,
ideologicamente, para acobertar a existência do segundo. (55)
A noção de Marx de uma sociedade pós-capitalista, então,
deve ser distinguida dos modos de acumulação de capital dirigidos pelo Estado.
A interpretação esboçada anteriormente, com sua ênfase na forma específica do
trabalho que constitui o capital, é consoante com a análise histórica do
surgimento dos países “socialistas realmente existentes”, no que diz respeito à
inter-relação entre o desenvolvimento do capitalismo industrial nos centros
metropolitanos da economia mundial e o crescente papel do Estado nas nações
“periféricas”. Poder-se-ia argumentar que, para uma fase do desenvolvimento do
capitalismo global, o Estado serviu para efetivar o surgimento do capital total
no espaço nacional. Nesta circunstância, a interferência estatal junto à livre
circulação de mercadorias, dinheiro e capital não implicou em socialismo. Ao
contrário, foi um dos poucos, se não o único meio, pelo qual uma “revolução do
capital” pode ter sucesso na periferia do contexto de um mercado mundial, onde
a conexão histórica original entre a revolução burguesa e a consolidação do
capital nacional, nunca tinha existido. O resultado não foi, e não poderia ter
sido, uma sociedade pós-capitalista. A sociedade determinada pelo capital não é
simplesmente uma função do mercado e da propriedade privada; e não pode ser
reduzida sociologicamente à dominação da burguesia.
Claramente, considerar as organizações estatais da sociedade
moderna, em termos do desenvolvimento da formação social capitalista, ao invés
de encará-las como uma negação do capitalismo, traz à baila a discussão da
questão da democracia pós-capitalista. A análise aqui apresentada fundamenta um
modo abstrato de coerções e restrições, historicamente específico do
capitalismo, a partir das formas sociais do valor e do capital. Como as
relações sociais expressas por estas categorias não são completamente
identificáveis ao mercado e à propriedade privada, segue que essas coerções e
restrições poderiam continuar a existir na ausência das relações burguesas de
distribuição. Em sendo assim, a questão da democracia pós-capitalista não pode
ser adequadamente apresentada apenas em termos de uma oposição entre concepções
de políticas estatizantes e não estatizantes. Ao contrário, deve-se considerar
uma dimensão crítica adicional, qual seja, a natureza das restrições impostas
às decisões políticas pelas formas do valor e do capital. Isto significa dizer
que, a abordagem que começarei a desenvolver nesta obra sugere que a democracia
pós-capitalista acarreta mais do que formas políticas democráticas na ausência
da propriedade privada dos meios de produção. Ela requereria do mesmo modo a
abolição de coerções sociais abstratas enraizadas nas formas sociais
apreendidas pelas categorias marxianas.
Tal reconstrução da teoria marxiana se apresenta mais
frutífera hoje enquanto uma maneira de analisar criticamente a sociedade
moderna. Ela pretende ser tanto uma crítica ao marxismo tradicional, quanto uma
tentativa de lançar fundamentos para uma teoria social crítica capaz de
responder às análises pessimistas de alguns grandes pensadores sociais, como
Georg Simmel, Émile Durkheim e Max Weber, cada um dos quais identificou e
analisou elementos dos aspectos negativos do desenvolvimento da sociedade
moderna. (Por exemplo, o exame de Simmel do crescente hiato entre a riqueza da
“cultura objetiva” e o relativo estreitamento do indivíduo, da “cultura
subjetiva”; a investigação de Durkheim sobre o crescimento da anomia com a
substituição da solidariedade mecânica pela orgânica; e a análise de Weber
sobre a racionalização de todas as esferas da vida social.) Ao escreverem
durante a transição de uma forma de capitalismo mais liberal para uma forma
mais organizada, cada um deles, preservando o próprio caminho, asseverou que a
teoria crítica do capitalismo – entendida como uma crítica da propriedade
privada e do mercado – não pode adequadamente apreender as características
essenciais da sociedade moderna; e cada um reconheceu que aspectos centralmente
importantes da vida social industrial moderna são deixados intactos, quando
somente o modo de distribuição e as relações de poder de classe são
transformados. Para estes pensadores, a substituição do capitalismo pelo
socialismo, como visualizado pelo marxismo tradicional, significava uma transformação
não fundamental da formação social, se não uma amplificação de seus aspectos
negativos.
A reinterpretação da teoria crítica de Marx que apresento
aqui é uma tentativa de enfrentar o desafio posto por diversos críticos da
sociedade moderna, mediante o desenvolvimento de uma teoria crítica do
capitalismo, mais ampla e profunda, uma crítica capaz de incorporar suas
críticas. Uma abordagem com esta pretensão, ao invés de considerar vários
processos – tais como o crescimento do hiato entre a cultura “objetiva” e a
“subjetiva”, ou a crescente razão instrumental da vida moderna – como
resultados necessários e irreversíveis de um desenvolvimento predestinado,
deverá permitir fundamentar socialmente tais processos com referência a formas
de prática social historicamente determinadas e captar sua trajetória
progressiva como sendo não-linear e transformável. Esta reinterpretação de Marx
também acarreta, conforme já observado, uma teoria sócio histórica da
subjetividade, com base na qual se poderia desenvolver uma poderosa abordagem
para a problemática weberiana da modernidade e da racionalização. Ainda que
confira importância às formas de pensar que foram cruciais para o
desenvolvimento do capitalismo e aos recorrentes processos de diferenciação e
de racionalização, a abordagem aqui apresentada pode dirigir-se a este
pensamento e àqueles processos, em termos das formas de vida social expressas
pelas categorias marxianas. Finalmente, veremos também que a teoria de Marx
sobre a constituição das estruturas sociais e da dinâmica histórica da
sociedade moderna, mediante formas de práticas historicamente determinadas,
pode ser interpretada como uma teoria sofisticada do tipo recentemente proposto
por Pierre Bourdieu – isto é, como uma teoria da relação, mutuamente constituinte,
entre a estrutura social e as formas quotidianas de prática e de pensamento.
(56) Uma teoria desta natureza seria capaz de superar a antinomia atualmente
muito difundida, entre o funcionalismo e o individualismo metodológico, nenhum
destes sendo capaz de relacionar intrinsecamente as dimensões objetiva e
subjetiva da vida social.
Mais importante ainda: uma teoria acerca do caráter
socialmente constituído das estruturas e dos processos históricos do
capitalismo é também uma teoria da sua possível superação. Esta superação pode
ser concebida em termos da dialética invertida esboçada acima, enquanto
apropriação subjetiva da cultura objetiva, e a transformação desta,
possibilitada pela superação da estrutura de coerção social abstrata enraizada,
em última instância, no trabalho alienado. A diferença entre capitalismo, assim
definido, e sua possível negação histórica pode, então, justificadamente ser
tratada como a diferença entre uma dada formação social e outra distinta.]
Notas
(1) Patrick Murray e Derek Sayer desenvolveram,
recentemente, reinterpretações da teoria de Marx que, em muitos aspectos, se
assemelham a esta aqui apresentada. Ver Patrick Murray, Marx’s Theory of
Scientific Knowledge (Atlantic Highlands, N. J., 1988); e Derek Sayer Marx’s
Method (Atlantic Highlands, N.J., 1979) e The Violence of Abstraction (Oxford,
1987).
(2) S. N. Eisenstadt também formulou urna teoria não
evolucionária da visão de modernidade. Sua preocupação principal é com as
diferenças entre os vários tipos de sociedades modernas, enquanto a minha está
voltada para a modernidade em si, como uma forma de vida social. Ver, por
exemplo, S. N. Eisenstadt, “The Structuring of Social Protest in Modern
Societies: The Limits and Direction of Convergence”, Yearbook of The World
Society Foundation, vol. 2 (London, 1992).
(3) Anthony Giddens chamou a atenção para a ideia de
especificidade da sociedade capitalista que está implícita no tratamento dado
por Marx às sociedades não capitalistas nos Grundrisse: ver Anthony Giddens, A
Contemporary Critique of Historical Materialism (London and Basingstoke, 1981),
pp.76-89. Pretendo fundamentar essa ideia com a análise categorial de Marx, por
conseguinte, com sua concepção da especificidade do trabalho no capitalismo, a
fim de reafirmar sua compreensão do capitalismo e repensar a verdadeira
natureza de sua teoria crítica.
(4) Ver Paul Sweezy, The Theory of Capitalist Development
(New York, 1969), pp. 52-53; Maurice Dobb, Political Economy and Capitalism
(London, 1940), pp. 70-71; Ronald Meek, Studies in the Labour Theory of Value
(2d. ed., New York, 1956), p. 155.
(5) Um ponto similar poderia ser suscitado, considerando a
relação entre socialismo e superação da dominação de gênero, quando
estabelecida no contexto do planejamento econômico e da propriedade estatal dos
meios de produção.
(6) Ver Stanley Aronowitz, The Crisis in Historical
Materialism (New York, 1981).
(7) Para conhecer tentativas de delinear e teorizar esta
mais nova fase do capitalismo, ver David Harvey, The Condition of Postmodernity
(Oxford and Cambridge, Mass., 1989); Scott Lash and John Urry, The End of
Organized Capitalism (Madison, Wisc., 1987); Claus Offe, Disorganized
Capitalism, ed. John Keane (Cambridge, Mass., 1985); Michael J. Piore and
Charles F. Sabel, The Second Industrial Divide (New York, 1984); Emest MandeI,
Late Capitalism, trans. Joris De Bres (London, 1975). Joachim Hirsch and Roland
Roth, Das Neue Gesicht des kapitalismus (Hamburg, 1986).
(8) A relação histórica entre os dois indica implicitamente que
o “socialismo realmente existente”, bem como os sistemas de bem-estar no
Ocidente, deveriam ser concebidos não como formações sociais fundamentalmente
diferentes, porém significando importantes variantes da forma geral do estado
intervencionista do capitalismo mundial do Século XX. Longe de demonstrar a
vitória do capitalismo sobre o socialismo, o recente colapso do “socialismo
realmente existente” poderia ser entendido como significando o colapso da forma
mais rígida, mais vulnerável e mais opressiva de capitalismo intervencionista
de Estado.
(9) Iring Fetscher também criticou alguns dos dogmas
centrais das noções de socialismo pressupostas pelas mais tradicionais críticas
ao capitalismo. Ele reivindica uma crítica democrática renovada ao capitalismo,
bem como ao “socialismo realmente existente”, que seria uma crítica com relação
ao crescimento desordenado e às técnicas contemporâneas de produção: ao mesmo
tempo, preocupada com as condições sociais e políticas que garantam uma
heterogeneidade genuína, individual e cultural e sensível à questão de uma
relação ecologicamente sadia entre os homens e a natureza. Ver lring Fetscher,
“The Changing Goals of Socialism in the Twentieth Century”, Social Research 47
(Spring 1980). Para uma versão antiga desta posição, ver Fetscher, Karl Marx
und der Marxismus (Munich, 1967).
(10) Para análises mais elaboradas acerca desta posição,
ver, por exemplo, Georg Lukács, History and Class Consciousness, tradução de
Rodney Livingstone (London, 1971); Marx Horkheimer, “Traditional and Critical
Theory”, in Max Horkheimer, Critical Theory, Matthew J. O’Connel et al. (New
York, 1972) [esta tradução não é adequada]; Herbert Marcuse, “Philosophy and
Critical Theory”, in Stphen Bronner and Douglas Kellner, eds., Critical Theory
and Society (New York and London, 1989); Theodor Adorno, Negative Dialetics
tradução de E. B. Ashton (New York, 1973); Alfred Schmidt, “Zum
Erkenntnisbegriff der Kritik der politischen bkeonomie”, in Walter Euchner and
Alfred Schmidt, eds. Kritik der politischen Okonomie heute: 100 JahreKapital
(Frankfurt, 1968).
(11) A fim de evitar mal-entendidos que poderiam ser
estimulados a partir do termo “categorial”, utilizo “categorial” para me
referir à tentativa de Marx de compreender as formas da moderna vida social por
meio de categorias utilizadas na sua crítica madura.
(12) Karl Marx, Grundrisse: Foundations of the Critique of
Political Economy, tradução de Martin Nicolaus (London, 1973), p. 106 (tradução
revisada).
(13) Jon Elster, Making Sense of Marx (Cambridge, 1985), p.
127.
(14) Ver Jürgens Habermas, The Theory of Communicative
Action, vol. I: Reason and Rationalization of Sociely, tradução de Thomas
McCarthy (Boston, 1984) e vol. 2: Lifeworld and System: A Critique of
Functionalist Reason, trad. de T. McCarthy (Boston, 1987).
(15) Alguns dos argumentos apresentados nesta seção foram
inicialmente desenvolvidos em Moishe Postone, “Necessity, Labor and Time”,
Social Research 45 (Winter 1978).
(16) A possível importância contemporânea dos Grundrisse foi
também reconhecida por Herbert Marcuse em “One-Dimensional Man” (Boston, 1964)
e mais recentemente por André Gorz em Paths to Paradise: On the Liberation from
Work (Boston, 1964), tradução de Malcolm Imrie (Boston, 1985). Para uma análise
rica e extensiva dos Grundrisse e de sua relação com O Capital, ver Roman
Rosdolsky, The Making of Marx’s “Capital”, tradução de Pete Burgess (London,
1977).
(17) Poder-se-ia levantar um argumento similar com respeito
às teorias que colocam a linguagem no centro de suas análises da vida social.
(18) John Stuart Mill, Principles of Political Economy (2d.
ed., London, 1849), vol. I, pp. 239-40 (citado em Marx, Grundrisse, p. 832).
(19) Grundrisse, p. 832.
(20) Ibid.
(21) Ibid.
(22) Por questão de simplicidade, referir-me-ei às “relações
de produção sub specie distributionis” como as “relações de distribuição”.
(23) Como discutirei posteriormente, a distinção entre as
relações de produção e as relações de distribuição é importante para entender a
relação entre as categorias do Livro I d’ O Capital, tais como valor,
mais-valia, processo de valorização e acumulação, e aquelas categorias do Livro
III, tais como, preço, lucro e renda. As primeiras categorias pretendem
expressar as relações sociais subjacentes ao capitalismo, suas “relações de
produção” fundamentais; as últimas categorias, de acordo com Marx, são
categorias de distribuição.
(24) Grundrisse, p. 712.
(25) Ibid., pp. 832-33.
(26) Ibid., p. 704 (o primeiro grifo em itálico foi
acrescido).
(27) Ibid.
(28) Ibid., p. 704 (itálicos acrescidos).
(29) Ibid. pp. 704-5.
(30) Jon Elster fornece um exemplo de tal argumentação. Ele
argumenta contra a teoria do valor e da mais-valia de Marx, negando “que os
trabalhadores tenham uma misteriosa capacidade de criar ex nihilo” [do nada,
explicação do tradutor]; assegura, em vez disso, que “a capacidade do homem de
extrair o sustento do meio ambiente torna possível a obtenção de um excedente
acima de qualquer nível de consumo” (Making Sense of Marx, p.141). Ao se
referir à questão da criação de riqueza de maneira transhistórica, o argumento
de Elster, implicitamente, toma o valor como um categoria transhistórica e,
através disso, confunde valor e riqueza.
(31) Grundrisse, p. 705 (a segunda ênfase foi adicionada
pelo autor).
(32) Ibid.
(33) Marx, Results of the Immediate Process of Production.
tradução de Rodney Livingstone, in Marx. Capital, vol. I, tradução de Ben
Fowkes (London, 1976), p. 1024 (V. também pp. 1034-35).
(34) Grundrisse, p. 708.
(35) Marx. A Contribution to the Critique of Political
Economy, tradução de S. W. Ryazanskaya (Moscow, 1970), pp. 21-22.
(36) Grundrisse. 9. 705.
(37) Ibid., p. 831.
(38) O Capital, vol. 1, pp. 458, 469, 481-82.486.547.
(39) Grundrisse, p. 708.
(40) O Capital. vol. I, pp. 376 e 638.
(41) Marx, Economic and Philosophic Manuscripts of 1844, in
Karl Marx and Frederick Engels, Collected Works, vol. 3: Marx and Engels:
1843-44 (New York. 1975). p. 279 ss. Uma discussão mais completa da relação
entre os manuscritos iniciais de Marx e seus trabalhos posteriores mostraria
que muitos outros temas dos primeiros escritos (por exemplo, as relações entre
as pessoas e a natureza, mulheres e homens, trabalho e lazer) permanecem
implicitamente centrais nos mais recentes, ainda que tenham sido reformulados
por sua análise do caráter historicamente específico do trabalho no
capitalismo.
(42) Grundrisse. p. 708.
(43) Ibid., p. 705.
* O termo monádico refere-se a mônadas que, segundo o
sistema filosófico desenvolvido por Gottfiried Wilhelm Leibiniz (1646-1716),
matemático e filosófo alemão, seriam centros conscientes de força espiritual ou
energia, dos quais se compõe o universo. Cada mônada, portanto, representa um
microcosmo individual refletindo o universo com graus variados de perfeição e
se desenvolvendo independentemente de todos os outros mônadas. (Microsoft
Encarta 99 Encyclopedia, CD-Rom, nota do tradutor).
(44) O Capital, vol. 1, pp. 477,547,614.
(45) Grundrisse, p. 705.
(46) Ibid., p. 325.
(47) Ibid., p. 708.
(48) Como discutirei no Capítulo 9, é importante distinguir
duas formas de necessidade e de liberdade na análise de Marx sobre o trabalho
social. Que ele pensou o trabalho social em uma sociedade futura, estruturado
de forma a ser satisfatório e gratificante, não significa, conforme vimos, que,
para Marx, tal trabalho transformar-se-ia em brincadeira. A noção de trabalho
não alienado para Marx é que o mesmo está livre de relações de dominação social
diretas e abstratas. Por conseguinte, o trabalho torna-se uma atividade para a auto
realização, mais parecida com lazer. Todavia, esta insubmissão com relação à
dominação não implica a liberdade com relação a todas as coerções, uma vez que
qualquer sociedade humana requer, de alguma maneira, trabalho a fim de
sobreviver. Que o trabalho nunca poderá ser uma esfera de liberdade absoluta,
não significa dizer, contudo, que o trabalho não alienado seja não-livre da
mesma maneira e na mesma medida que o trabalho compungido pelas formas de
dominação social. Em outras palavras, Marx, ao negar que a liberdade absoluta
pudesse existir no mundo do trabalho, não está retrocedendo à oposição
indiscriminada do trabalho com relação à liberdade e à felicidade, como sugere
Adam Smith. (Ver Grundrisse, pp. 611-12.)
É evidente que nem todo trabalho unilateral e fragmentado
poderá ser abolido de imediato com a superação do capitalismo. Além do mais, é
concebível que alguns desses trabalhos nunca poderão ser abolidos totalmente
(embora o tempo a eles dedicado possa vir a ser drasticamente reduzido, e tais
tarefas realizadas de forma alternada pela população). Todavia, a fim de
enfatizar o que considero a principal instigação da análise do trabalho no
capitalismo feita por Marx, e sua concepção de trabalho relacionada a uma
futura sociedade, não levarei em conta tais questões neste trabalho. (Para uma
breve discussão de tais questões, V. Gorz, Paths to Paradise, p. 47 ss.)
(49) Grundrisse, p.706.
(50) O argumento de que a contradição básica do capitalismo,
para Marx, é estrutural e não se refere simplesmente ao antagonismo social foi
elaborado também por Anthony Giddens. No entanto, este situa a contradição em
termos da relação entre a apropriação privada e a produção socializada, isto é,
entre as relações burguesas de distribuição e a produção industrial: ver Anthony
Giddens, Central problems in Social Theory (Berkeley and Los Angeles, 1979),
pp. 135-41. Minha leitura dos Grundrisse fundamenta uma interpretação bastante
distinta.
(51) Nos Capítulos 4 e 5, elaborarei mais extensivamente
sobre esta posição, como ela tem sido proposta por Jürgen Habermas em Knowledge
and Human Interests, tradução de Jeremy Shapiro (Boston 1971) e por Albrecht
Wellmer em Critical Theory of Society, tradução de John Cumming (New York,
1974).
(52) O Capital, vol. I, pp. 568-69, 798 ss.
(53) Ibid., p. 344.
(54) Marx, “Theses on Feuerbach”, in Karl Marx and Frederick
Engels, Collected Works, vol. 5: Marx and Engels: 1845-47 (New York, 1976),
pp.5-8.
(55) Nesta obra, não procurarei as implicações da minha
reconsideração da concepção de Marx acerca dos parâmetros básicos do
capitalismo com respeito à questão dos estágios ou formas da sociedade
pós-capitalista (por exemplo, “socialismo” e “comunismo”). No entanto, devo
chamar a atenção de que os termos da questão se modificam quando as formas de
dominação social e exploração, elementos centrais e característicos do
capitalismo, não mais estão localizadas na propriedade privada dos meios de
produção, mas, em vez disso, nas estruturas das relações sociais expressas
pelas categorias mercadoria e capital; bem como, quando o processo de alienação
é entendido como uma forma estabelecida histórica e socialmente, em vez de ser
entendido como entranhado numa essência humana pré-concebida. Para uma
abordagem diferente desta questão, ver Stanley Moore, Marx and the Choice
between Socialism and Comunism (Cambridge, Mass., and London, 1980). Moore
identifica a exploração com a propriedade privada capitalista e, sobre esta
base defende a superioridade de uma sociedade onde existe a troca, mas sem a
propriedade privada dos meios de produção (sua definição de “socialismo”) e uma
sociedade sem nenhuma das duas (o “comunismo”); ver pp. viii-ix, 34-35 e 82. A
intenção de Moore é argumentar contra a visão de que o socialismo, assim
definido, é meramente uma forma incompleta de sociedade pós-capitalista, um
prelúdio para o «comunismo”. Ao fazer isso, procura enfraquecer uma
justificativa ideológica para a repressão política, social e cultural nas
sociedades “socialistas realmente existentes” (p. x). Neste sentido, há um
paralelo em termos de intenção estratégica, entre a abordagem de Moore e a
interpretação bastante diferente de Marx aqui apresentada para a qual tais
sociedades não deveriam ser consideradas, de forma alguma, como
pós-capitalistas.
(56) Pierre Bourdieu, Outline of a Theory of Practice,
tradução de Richard Nice (Cambridge, 1977), pp. 1-30, 87-95.
MoishePostone
é professor da Universidade de Chicago (http://history.uchicago.edu/faculty/postone.html)
e autor do livro “Time, Labor and Social Domination. A Reinterpretation of
Marx’s Critical Theory”,(Cambridge University Press, 1993, 424 pages, ISBN
0-521-39157-1), publicado nos Estados Unidos da América, e de que o texto acima
constitui o Capítulo I. Time, Labor and Social Domination Chapter Contents
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