“Quando para construir meu eu, eu preciso assassinar
conceitualmente o outro, assassiná-lo fisicamente passa a ser um corolário em
algum momento inevitável.”
Flávio Aguiar , In Carta Maior
(*) Publicado originalmente
no blogue do Velho
Mundo, Rede Brasil Atual.
[A partir do meu post sobre o massacre no Charlie Hebdo,
cometido em nome de uma visão (?) preconceituosa construída a partir do Islã, e
de seus igualmente trágicos desdobramentos, meu amigo e blogueiro Telmo Kiguel
(do site Sul21) me pergunta:
“Pensas que pode ter sido também um final terrível entre os
que são contra o Estado laico e os jornalistas que o defendiam”? “Este
aspecto teria que significado no episódio”?
É uma pergunta absolutamente pertinente, e de “muitos
gumes”. Vou tentar respondê-la levando em conta toda a sua complexidade.
Começo por uma observação pessoal e universal. Todos
carregamos preconceitos. Trazemo-los do berço, da família, da escola, da
formação profissional, de nossas preferências esportivas, políticas, etc., e
coloquemos etc. nisto. Como diz o dito popular, a melhor artimanha do Diabo é
convencer-nos de que não existe. Aí é que Ele impera, assim com maiúscula. A
maior ingenuidade que se pode cometer é acreditar que não se tem preconceito
algum. Mas ter preconceitos é uma coisa. Outra coisa é outra coisa: deixar-se
dominar por eles, permitindo que eles se transformem em juízos absolutos de
fato é outra coisa.
Segunda observação. Preconceitos que põem em perigo o Estado
laico não são privilégio de visões sectárias islamistas. Podemos revolver o
passado. O que a Igreja Católica e mesmo outras profissões cristãs fizeram em
nome do Cristo fariam este se revolver na cruz. O que o próprio Estado laico
francês cometeu no caso Dreyfus ofende seu próprio conceito, e o que faz hoje
ao proibir que estudantes islâmicas usem seus véus na escola pública não fica
muito atrás. A própria ideia proposta pelo governo de Benyamin Netanyahu de
declarar Israel um Estado “judaico” vai na mesma esteira.
Aqui na Alemanha movimentos aparentemente laicos como o
PEGIDA – Patriotas Europeus (!) contra a Islamização do Ocidente – nega o
núcleo central do conceito da laicidade do Estado, que é o da universalização
dos direitos da cidadania, independentemente da crença particular de cada
cidadão. Por Estado laico não se pode conceber apenas uma instituição pública
que não pendura crucifixos nas salas de aula. É necessário que o este Estado
dito laico reconheça a igualdade de todos perante a lei dentro de suas
diferenças. Por isto a atitude do Estado francês, proibindo o uso da burca na
rua ou os véus islâmicos no espaço escolar é equivocada. No limite isto
implicaria proibir freiras de vestir o hábito no espaço público, padres a
batina, harekrishnas a toga laranja e até exigiria que fiscais na entrada das
escolas revistassem moças e rapazes para ver se não carregam crucifixos
clandestinos sob as roupas.
O ataque terrorista da semana passada trouxe de volta o
poderio da AlQaïda, que estava um tanto em segundo plano, mas o gesto mais
significativo de todos neste sentido foi o de Amédy Coulibaly, gravando sua
“filiação” ao Estado Islâmico, ex-ISIS. Neste gesto ele revela a adesão do
trio, ou quarteto, ou seja que algarismo for, à perspectiva de construir um
Estado que se baseie na discriminação agressiva dos seres humanos, dividindo-os
entre aqueles que têm direito a ter direitos e aqueles que não têm, seja por
serem inferiores aos outros, seja por serem considerados uma espécie de
anti-humanidade.
É preciso reconhecer, no entanto, que esta estrutura de
pensamento, a divisão entre ter direito a ter direitos e não tê-lo, prescinde
da figura de um Deus, Alá, Javé, Zeus, Júpiter ou o que for, assim como prescinde
da sua centralização num espaço coletivo de contato com o sagrado, que é o que
a religião estabelece. O que importa é sua centralização por algo – que além da
religião pode ser uma pertença étnica, nacional, cultural, sexual ou qualquer
outra – que se absolutiza e passa a negar ou a relegar a um plano de
inferioridade quem carregue consigo outras pertenças.
Quando a extrema direita europeia nega o status de igualdade
dos muçulmanos ou imigrantes de um modo geral, ela está corroendo o princípio
do Estado laico de modo conceitualmente idêntico aos dos três assassinos que
metralharam os jornalistas, os policiais e o gesto de um deles, depois, matando
judeus no supermercado por serem judeus, nada mais. Ela – a extrema-direita –
está alimentando esta visão assassina do mundo. Da mesma forma, esta visão
assassina é alimentada pela nossa extrema-direita, ao pedir, por exemplo, a
volta da ditadura militar. Também não escapa desta máquina de moer assassina o
gesto de Marine Le Pen ao sugerir, na esteira dos acontecimentos da semana
passada, o retorno da pena de morte na França. A sugestão equivale a de uma
eutanásia social e cultural.
O pior disto tudo é que daí pode emergir o sentido de uma
“nova” cruzada anti-muçulmana, assim como uma das pires coisas que pode
acontecer é, à luz da proposta de Netanyahu de transformar Israel num “Estado
Judaico” e do reforço das atitudes anti-palestinos que seu governo vem
encarnando, o engrossar do caldo antissemita que lateja ainda e sempre na
Europa e no mundo.
Como vivemos na era da absolutização dos individualismos –
de suas crenças narcísicas e também de suas descrenças na alteridade – quem
defenda a perspectiva de um Estado laico vai ter muito trabalho daqui para
frente. O gesto impiedoso de um dos irmãos Kouachi, filmado e exposto ao mundo,
dando o tiro de misericórdia (?) no policial muçulmano Ahmed, já baleado e
caído no chão, sintetiza a complexidade desta problemática pergunta levantada
pelo Telmo: a discriminação não tem limites nem fronteiras, pois quando para
construir meu eu, eu preciso assassinar conceitualmente o outro, assassiná-lo
fisicamente passa a ser um corolário em algum momento inevitável.]
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