Se você perguntar a um budista (zen ou não) desavisado qual
é a essência da sua religião ele vai responder que é a superação ou a supressão
do sofrimento.
Há uma lógica nisso, pois o budismo tem como base as Quatro Nobres Verdades:
A verdade do sofrimento.
A verdade da origem do sofrimento.
A verdade da cessação do sofrimento.
A verdade do caminho que leva à cessação do sofrimento.
Dukkha (sofrimento
em sânscrito) significa, no entanto, insatisfação.
Posto sob essa outra luz o que se tem de superar (ou fazer
cessar o sofrimento) tem pouco a ver com perdas amorosas ou de entes queridos,
com o desapontamento por um projeto que não funcionou, uma dor de dente ou uma enxaqueca.
Tem a ver com a transcendência daquilo que nos incomoda, e
para se chegar a ela tem-se de resgatar o pano de fundo do budismo que é a
impermanência (mudança).
Para o budismo, a existência (do indivíduo) muda
constantemente, a começar pelo que se entende por individualidade (o ego
freudiano) que inexiste: “não existe um eu individual”.
Para o budista, a experiência (individual) nada mais é senão
a própria mudança, ela própria a natureza de toda existência.
Quando entendermos a perenidade da verdade, "tudo
muda", e aí encontramos a serenidade e descobrimos o Nirvana (Nibbana).
Ao fim de todo o caminho que leva um brami à verdade (ao Nibbana) – verdade, por si só, uma contradição
frente à impermanência - o sábio não vai encontrar nada.
Se depara com o Tao
(caminho, sem o artigo O) que só pode ser apreendido por intuição; que,
portanto, não pode ser ensinado ou explicado, apenas compreendido.
Tao é o caminho da
espontaneidade natural, aquele que produz todas as coisas que existem. O te (德, a
virtude) é o modo de caminhar espontâneo que dá às coisas a sua perfeição.
Tao não transcende
o mundo. Tao é a totalidade da
espontaneidade ou a naturalidade de todas as coisas.
Tao não faz nada. Não
precisa fazer para que tudo o que deva ser feito seja ou esteja feito.
Todas as pessoas são/podem ser felizes desde que evoluam conforme
sua própria natureza.
Não deixar o caminho (Tao)
fluir espontaneamente é que causa a dor e o sofrimento.
E aí voltamos às Quatro
Nobres Verdades (do budismo) e à necessidade da superação do sofrimento e
não da sua supressão.
Amor, ciúme, cólera e
outras besteiras
A cultura Ocidental, cujo sustentáculo está no judaísmo (o
ortodoxo e atual) e no cristianismo (o primitivo e o moderno) é um imenso vale
de lágrimas e de sofrimentos constantes, a começar pela Criação, pelo pecado
original, pela expulsão de Adão e Eva do Paraíso, pelos êxodos judaicos e pelo martírio
dos profetas, o mais espetaculoso deles, a agonia de Jesus Cristo.
O Criador é o Pai, um pai autoritário, algoz, a quem devemos
obediência, uma obediência que nos tira a liberdade (até de não-Ser – não sermos).
Não há impermanência, mas sofrimentos e estoicismo se quisermos
chegar ao Paraíso.
Não podemos suprimi-la, a impermanência, pois com ela o
reino dos céus não será nosso.
Não por acaso somos inseguros, neuróticos, afoitos. Não por
acaso sofremos de amor, de ciúme, de cólera; que nos levam aos remédios, às
análises e a uma vida infernal e dolorosa.
Não somos impermanentes (se é possível dizer a coisa dessa
forma).
Koans
Para ajudar um pouco, alguns koans abaixo.
É mesmo?
Uma linda garota da vila ficou grávida. Seus pais,
encolerizados, exigiram saber quem era o pai. Inicialmente resistente a
confessar, a ansiosa e embaraçada menina finalmente acusou Hakuin, o mestre Zen
o qual todos da vila reverenciavam profundamente por viver uma vida pura.
Quando os insultados pais confrontaram Hakuin com a acusação de sua filha, ele
simplesmente disse: “É mesmo?”
Quando a criança nasceu, os pais a levaram para Hakuin, o
qual agora era visto como um pária por todos da região. Eles exigiram que ele
tomasse conta da criança, uma vez que essa era sua responsabilidade.
“É mesmo?”, Hakuin disse calmamente enquanto aceitava a
criança.
Por muitos meses ele cuidou carinhosamente da criança,
conseguindo leite com os vizinhos e tudo o mais que o bebê necessitava. Até o
dia em que a menina não aguentou mais sustentar a mentira e confessou que o
verdadeiro pai era um jovem da vila que ela estava tentando proteger.
Os pais imediatamente foram a Hakuin, constrangidos, para
ver se ele poderia devolver a guarda do bebê. Com profusas desculpas eles
explicaram o que tinha acontecido, enquanto pediam o seu perdão.
Hakuin consentiu. Ao entregar a criança, tudo o que ele
disse foi: “É mesmo?”
A prisão
Em um mosteiro Zen, um monge novato estava agindo de forma
rebelde às normas do local, causando certo tumulto. O mestre, percebendo o
desconforto da comunidade dos monges, resolveu chamar a atenção do monge
rebelde determinando-lhe que ficasse num alojamento a parte para que refletisse
sobre a sua conduta. Contrariado, mas obediente, o monge aceitou a ordem e foi
levado ao tal alojamento.
Passaram-se algumas semanas e o monge ainda estava no mesmo
aposento, onde lhe levavam diariamente comida e água que eram deixadas em uma
abertura da porta. Todo esse tempo de enclausuramento fez com que chegasse à
conclusão que havia de fato passado dos limites com aquela atitude de rebeldia.
Estava realmente arrependido.
O tempo passava e já fazia alguns meses que o monge estava
lá, quando começou a se inquietar e pensou, indignado: "Sei que abusei da
minha liberdade, mas não acho que minha atitude tenha sido tão grave ao ponto
de ficar tantos meses trancafiado nesta prisão. Agora quem passou dos limites
foram eles. Não vou mais aceitar tamanho absurdo. Vou sair daqui imediatamente,
nem que eu tenha que arrebentar esta porta."
Neste momento, o monge se aproxima da porta e, numa atitude
enraivecida, tenta forçar a tranca da porta para arrombá-la logo em seguida. Ao
fazer isso, a porta se abre sem qualquer esforço de sua parte. Espantado, o
monge nota que a porta estava aberta durante todo o tempo em que permanecera
ali!
Impermanência
Um famoso mestre Zen aproximou-se do portal principal do
palácio do Imperador. Nenhum dos guardas tentou pará-lo, constrangidos,
enquanto ele entrou e dirigiu-se onde o Imperador estava, solenemente sentado
em seu trono.
"O que vós desejais?", perguntou o governante,
imediatamente reconhecendo o visitante.
"Eu gostaria de um lugar para dormir aqui nesta
hospedaria," replicou o mestre.
"Mas aqui não é uma hospedaria, bom homem”, disse o
Imperador, divertido, "Este é o meu palácio."
"Posso lhe perguntar a quem pertenceu este palácio
antes de vós?" perguntou o mestre.
"Meu pai. Ele está morto."
"E a quem pertenceu antes dele?"
"Meu avô," disse, já bastante intrigado, "Mas
ele também está morto."
"Sendo este um lugar onde pessoas vivem por um curto
espaço de tempo e então partem - vós me dizeis que tal lugar não é uma
hospedaria?"
O ladrão
Uma noite quando Shichiri Kojun estava recitando sutras um
ladrão com uma espada entrou em seu zendo, exigindo seu dinheiro ou a sua vida.
Shichiri disse-lhe: "Não me perturbe. Você pode encontrar o dinheiro
naquela gaveta."
E retomou sua recitação.
Um pouco depois ele parou de novo e disse ao ladrão: "Não
pegue tudo. Eu preciso de alguma soma para pagar os impostos amanhã."
O intruso pegou a maior parte do dinheiro e principiou a
sair.
"Agradeça à pessoa quando você recebe um presente",
Shichiri acrescentou.
O homem lhe agradeceu, meio confuso, e fugiu.
Poucos dias depois o indivíduo foi preso e confessou, entre
outras coisas, a ofensa contra Shichiri. Quando Shichiri foi chamado como
testemunha ele disse: "Este homem não é ladrão, ao menos tanto quanto me
diz respeito. Eu lhe dei o dinheiro e ele inclusive me agradeceu por
isso." Após o homem ter cumprido sua pena, ele foi a Shichiri e tornou-se
um de seus discípulos.
A lua
Ryokan, um mestre zen, vivia o tipo mais simples possível de
vida em uma pequena cabana no sopé de uma montanha. Uma noite, um ladrão
visitou a cabana e surpreendeu-se ao descobrir que não havia nada nela para ser
roubado. Ryokan voltou e o pegou.
“Você provavelmente veio de longe para me visitar”, disse
ele ao gatuno. “E não deve voltar com as mãos vazias. Por favor, tome minhas
roupas como um presente.”
O ladrão ficou completamente desnorteado. Ele pegou as
roupas e escapuliu.
Ryokan sentou-se nu, observando a lua.
“Pobre rapaz. Eu gostaria de poder ter dado a ele esta bela
lua.”